Nos últimos anos, a palavra vigor ganhou força no vocabulário da cadeia de sementes, e o mercado adora números simples para gerar confiança. O que antes era um conceito técnico, usado em laboratórios e em estudos acadêmicos, hoje aparece em embalagens, discursos comerciais e nos slogans de venda. Virou quase um selo mágico, sinônimo de alta qualidade e de garantia de produtividade, porque se garante na venda o tal “90% de vigor” ou mais. Mas será que esse número, isoladamente, traduz o que o produtor realmente vai encontrar no campo ou significa um risco?
Primeiro, é necessário entender que o vigor, embora seja um atributo fisiológico extremamente importante, não substitui a germinação. São indicadores complementares. Seu conceito se refere à capacidade da semente germinar de forma rápida, uniforme e produzir plântulas normais, mesmo sob condições adversas de ambiente. Engloba vários aspectos como velocidade e uniformidade de germinação, tolerância a estresses (hídrico, térmico, mecânico), conservação em armazenamento e habilidade de originar plântulas com bom desempenho. Por outro lado, a germinação em laboratório é considerada como a emergência e o desenvolvimento das estruturas essenciais do embrião, demonstrando sua aptidão para produzir uma planta normal sob condições favoráveis. Ou seja, mede o máximo potencial em condições ótimas, indiferente ao desempenho de plântula, se essa tende ser mais forte ou mais fraca.
A questão que precisa ser posta é de que, perante a legislação brasileira, quem garante a qualidade de sementes é a germinação mínima (80%) para soja, estabelecida e fiscalizada pelo Ministério da Agricultura e da Pecuária (MAPA). Durante décadas, a comercialização sempre se pautou pela germinação, pois ela assegura a viabilidade mínima do lote. Já faz algum tempo, vários produtores têm adotado germinação maior do que a estabelecida pelo MAPA, porém, nas embalagens continuam na garantia de 80%, na sua grande maioria.
O problema surge quando o discurso de venda passa a ser apenas pelo vigor e, geralmente, com promessas ilusórias. O forte argumento comercial não é ilegal, mas pode ser enganoso, tanto que a fiscalização do comércio efetuada pelo MAPA é sobre a germinação do lote e não sobre o vigor. Há ainda uma questão importante: qual dos vários testes que determinam o vigor fornece o resultado para dar esta garantia?
A indústria sementeira tem enfrentado o dilema de prometer números mágicos que a condição ambiental e a genética muitas vezes não permitem entregar. A genética moderna, com cultivares de ciclo mais curto e arquitetura diferente de planta, é mais sensível ao estresse de colheita, pós-colheita e de beneficiamento. No que se refere ao ambiente, tem ocorrido mudanças no regime de chuvas, altas temperaturas, secas prolongadas que aumentam a dificuldade de produzir lotes uniformes e com alto potencial fisiológico. Sendo assim, o “90 de vigor” fica cada vez mais difícil de ser mantido com consistência.
Novamente a pergunta: um número matemático traduz de fato desempenho consistente de um organismo biológico no campo?
Existem muitos elos que podem fazer nascer a frustração do produtor diante da qualidade de sementes recebida, que não corresponde ao marketing. Citaremos alguns destes. Após receber as sementes, as amostras que são retiradas dos lotes adquiridos podem não representar veracidade, porque quando a coleta dessas amostras não segue rigor técnico, o número gerado no laboratório pode não refletir a realidade no campo, o lote pode ser heterogêneo. Também há os problemas de metodologias e execução nos diferentes laboratórios. Alguns não aplicam corretamente as metodologias ou ainda, mesmo se corretos, existem as possíveis variáveis de um teste específico e as combinações de fatores que influenciam o resultado e a padronização metodológica, que podem também gerar resultados inconsistentes.
Os testes exigem padronização e exatidão. Uma outra situação que tem criado confusão é a falta de utilização de tabela de tolerância, principalmente no teste de envelhecimento acelerado, um dos testes de vigor mais solicitado e o que apresenta o maior número de variáveis que podem divergir entre o mesmo laboratório e outros laboratórios. O objetivo do estabelecimento de tolerâncias é avaliar se a variação dos números, dentro e entre testes, é aceitável quanto à precisão desses resultados. Testes conduzidos com o mesmo lote de sementes raramente produzem resultados idênticos, pois estão sujeitos à variação do acaso, causada por erros de amostragem e de experimento. Os limites de tolerância especificam o grau máximo de variação entre os resultados obtidos, indicando até que ponto podem diferir e serem considerados consistentes.
Ainda existem outras razões de discordâncias. Mesmo que os lotes apresentem “o vigor 90”, esse pode ser minimizado através do uso de defensivos, polímeros ou grafite de maneira indiscriminada, provocando interações que causam fitotoxidez; falta ou excesso de água, temperaturas excessivas; interação solo x clima; falhas na semeadura (profundidade, compactação, cobertura); residual de herbicidas. Enfim, não são poucas as interações que contribuem para a não correspondência das expectativas dos usuários dos lotes de sementes.
Uma circunstância bem pertinente às cultivares atuais: dois lotes podem ter “90 de vigor”, mas apresentar desempenhos de plântulas totalmente diferentes. Se um lote não tiver a maioria de plântulas fortes e intermediárias, o produtor terá estandes falhos ou desuniformes. E quando isso acontece, a insatisfação é inevitável.
Desta forma, existe a cadeia de responsabilidades, e a decepção pode se originar de diversas fontes, como amostragem, laboratório, semeadura, produtos químicos, marketing, entre outros.
Portanto, vale lembrar: a legislação brasileira sempre garantiu a germinação, porque ela é o alicerce da qualidade. O vigor é, sim, um diferencial importante — mas não pode ser usado como vitrine de venda isolada. Em tempos de clima desafiador e novas genéticas, transformar o vigor em número mágico é arriscado para todos os elos da cadeia. E, quando o “90 de vigor” não chega ao campo, não é apenas a lavoura que perde, é a confiança na cadeia de sementes que se quebra. A qualidade de sementes não cabe em um número redondo. No fim das contas, a semente é organismo vivo, complexo, sujeito ao ambiente, ao manejo e à genética.