Em ato simbólico ocorrido no dia 2 de setembro, a presidente do Instituto Pensar Agropecuária (IPA), Tânia Zanella, fez a entrega da proposta de alteração da Lei de Proteção de Cultivares (LPC) para o presidente da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), Pedro Lupion, inaugurando assim a etapa legislativa desse importante instrumento de política agrícola.
Diferente da década de 1990, quando, para cumprir compromissos firmados na Rodada do Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC), o governo brasileiro capitaneou um conjunto de ações visando atualizar e/ou implementar legislações nacionais dispondo sobre a propriedade intelectual, dentre elas a que previa a adoção de um sistema sui generis de proteção de variedades de plantas (PVP), desta feita, o setor produtivo, por meio de suas entidades representativas, é a principal força motriz do processo de modernização da Lei nº 9.456, de 1997.
Desta feita, o setor produtivo é a principal força motriz do processo de modernização da LPC.
O destaque fica para o desprendimento incomum do agricultor, que abre mão do direito consagrado de não pagar pelos direitos pecuniários sobre a semente e a muda de uso próprio em prol do fortalecimento econômico-financeiro da pesquisa agrícola, na esperança de que a medida resulte numa maior e mais diversificada disponibilização de novas e mais modernas cultivares para a agricultura nacional. Sem o agricultor, nada seria possível.
Passados 28 anos da edição da LPC, mesmo considerando os impressionantes saltos tecnológicos alcançados pelo algodão, milho e soja - culturas com forte presença de organismos geneticamente modificados (OGM) -, para as demais espécies, a lei em pouco, ou nada, contribuiu no sentido de fortalecer os trabalhos de pesquisa em melhoramento e obtenção de cultivares mais produtivas e resistentes a fatores bióticos e abióticos.
A razão principal reside nas dificuldades que o obtentor enfrenta para capturar royalties para além da semente ou da muda comercial em culturas não modificadas geneticamente. Isso desestimula a pesquisa, e a consequência imediata é uma baixíssima taxa de utilização de sementes e mudas certificadas, sinalizando para um profundo abismo tecnológico a separar as grandes comodities agrícolas das demais espécies vegetais cultivadas no país.
USO PRÓPRIO / PRODUTO COMERCIAL DA COLHEITA A proposta de alteração da LPC traz como importante premissa o equilíbrio nas relações entre obtentor, produtor de sementes e mudas e agricultor. Esse equilíbrio se traduz, principalmente, mas não apenas, nos dispositivos que regulam o uso próprio e o produto comercial da colheita.
A regra geral para o uso próprio, definida no artigo 10(I), é que o agricultor é livre para reservar sementes ou produzir mudas para uso próprio desde que pague os direitos pecuniários (royalties) devidos ao titular do direito de proteção e cumpra com as exigências estabelecidas na legislação pertinente, em particular no Anexo XIX da Portaria MAPA Nº 538, de 2022 (sementes) e no Anexo XXX da Portaria MAPA Nº 616, de 2023 (mudas).
Exceções estão contempladas na proposta de alteração, a exemplo da cana-de-açúcar, do eucalipto, do pinus e da teca, para às quais o uso próprio tem caráter autorizativo; já para espécies olerícolas e ornamentais, além do uso próprio ser terminantemente vedado, também não seria permitido ao pequeno produtor rural multiplicar sementes para doação ou troca para outros pequenos produtores rurais.
Dessa forma, para essas espécies, a única forma legal de fazer uso do material de propagação da cultivar protegida é através de licenciamentos concedidos pelo titular do direito de proteção – afora isso, a comercialização do material de propagação da cultivar protegida sem expressa autorização do titular constitui crime, punível na forma do artigo 37-B, além das sanções administrativas e cíveis cabíveis.
Caso o agricultor não cumpra com o pagamento dos valores pecuniários incidentes sobre o material de propagação da cultivar protegida, a lei prevê que, excepcionalmente, o direito do obtentor poderá se estender até ao produto comercial da colheita.
Em síntese, aprovada a alteração proposta, o direito do obtentor recairá (nessa ordem): sobre a semente ou a muda comercial; sobre a semente ou a muda de uso próprio; e sobre o produto comercial da colheita. O texto aproxima a legislação brasileira, assim, da Convenção da União Internacional para a Proteção das Obtenção Vegetais de 1991 (UPOV/91). Importa salientar o equilíbrio trazido pelo texto para as relações comerciais do obtentor com os demais elos da cadeia produtiva. Ou seja, a cobrança dos direitos pecuniários (royalties) a que o titular do direito de proteção faz jus deve guardar estreita harmonia entre o valor definido, a cada safra, para a semente ou a muda comercial, com o incidente na semente ou na muda de uso próprio, ou no produto comercial da colheita, ou seja: • para o uso próprio, o valor dos direitos pecuniários será o mesmo daquele cobrado da semente ou da muda comercial definido pelo obtentor, a cada safra. • para o produto comercial da colheita, o valor dos direitos pecuniários deverá, no mínimo, atender à mesma regra aplicada para o uso próprio, acrescido dos custos adicionais suportados pelo titular da proteção para exercer os seus direitos.
Importante observar que a base da cobrança dos direitos pecuniários, ao longo da cadeia dos direitos protegidos, será sempre o valor livremente definido, a cada safra, pelo titular do direito para a semente ou a muda comercial da cultivar protegida.
CONCEITOS Outro aspecto a ressaltar refere-se a alguns conceitos aplicados à proteção de cultivares, cabendo destacar:
Descritor: foi adicionada à característica herdada a característica inserida ou modificada, abrindo ao órgão aplicador da lei a possibilidade de incluir no formulário de descritores mínimos, exigidos no requerimento de pedido de proteção de cultivares, informações sobre características resultantes de processos biotecnológicos, aportando maior clareza e segurança ao usuário de cultivares geneticamente modificadas;
Uso próprio: entendeu-se que os conceitos constantes do inciso XLIII do art. 2º da Lei nº 10.711, de 2003 (semente), e do inciso XXXI do art. 3º do Decreto nº 10.586, de 2020 (muda), aportam a segurança jurídica necessária para o exercício pleno dos direitos sobre a cultivar protegida;
Obtentor/titular: na ausência desses conceitos, paira uma certa confusão, pois é comum referir-se a obtentor como sinônimo de titular e vice-versa. Portanto, doravante, resta explicitado que a pessoa pode ser a obtentora de uma ou mais cultivares, mas não deter a titularidade sobre estas. Produto comercial da colheita: por se tratar de um tema novo no arcabouço da proteção de cultivares no Brasil, identificou-se a necessidade de trazer para o corpo do projeto de lei o conceito constante do inciso XXIX do art. 3º:
“O produto comercial da colheita inclui plantas inteiras e partes de plantas obtidas por meio do uso de material de propagação da cultivar protegida, até o limite do beneficiamento necessário para recebimento, sem que tenha sofrido qualquer alteração do seu estado natural para destinação comercial”.
Como visto, o conceito de produto comercial da colheita, aplicável à proteção de cultivares, traz dois elementos a serem detalhados por ocasião da regulamentação da lei: beneficiamento necessário e estado natural.
Definir com exatidão o momento em que o produto da colheita deixa o seu estado natural e passa à condição de produto semiprocessado, processado ou industrializado é tarefa imprescindível, vez que o direito do obtentor não alcança o produto feito a partir do produto da colheita da cultivar protegida, previsto na UPOV/91.
Manoel.jpg100.67 KB SANÇÕES Para combater o crescente e nefasto comércio ilegal de sementes e de mudas, estão previstas medidas punitivas mais duras, especialmente contra aquele que atentar contra os direitos de propriedade intelectual sobre cultivares protegidas.
Ao lado das sanções administrativas vigentes, o PL prevê sanções cíveis e penais a quem incorrer em atividade vedada na lei. Esse é um passo importantíssimo no sentido de dotar de instrumentos legais consistentes as ações de combate à pirataria de sementes e de mudas de cultivares protegidas (ver tabela no texto).
PRÁTICAS ABUSIVAS Merece destaque a inovação introduzida pelo PL, com previsão de sanções ao titular do direito de proteção que adotar práticas abusivas: • pelo uso indevido do seu direito fica o titular da proteção obrigado a indenizar o produtor rural e outras partes lesadas em valores proporcionais aos danos morais e perdas patrimoniais, individuais, coletivos e difusos; estes podem ser identificados no prazo de até três anos, na forma do regulamento. • Constitui uso indevido do direito, entre outras práticas: • cobrança de direitos na ausência de título de proteção; • cobrança de direitos sem a concordância expressa do produtor rural; • não informar, do valor cobrado sobre o material de propagação, quanto corresponde ao valor pecuniário referente aos direitos de proteção; • publicidade enganosa.
PRAZO DE PROTEÇÃO Outro avanço em direção à UPOV/91 dá-se em relação aos prazos de proteção, que passam a vigorar conforme a tabela no texto.