Porque é tão difícil armazenar soja por mais de 1 ano?

Edição XXV | 05 - Set . 2021
Geri Eduardo Meneghello-gmeneghello@gmail.com
   Desde a década de 1980, a soja figura entre as principais espécies agrícolas de nosso agronegócio. Atualmente, o Brasil ocupa o posto de maior produtor mundial desta oleaginosa, posição alcançada principalmente em função da criação de cultivares adaptadas a regiões com baixas latitudes, e pela adoção de tecnologia por parte dos agricultores, destacando-se adubação, manejo e conservação dos solos, além do uso de sementes de alta qualidade. Analisando a série histórica disponibilizada pela CONAB, na safra 1981/82 foram cultivados com soja 8,4 milhões de ha, com produção de 12,9 milhões de ton., e produtividade de 1.536 kg/ha. Em contrapartida, a previsão para a safra 2021/22, ou seja, 40 anos depois, indica que serão cultivados 38,5 milhões de ha, a produtividade será superior a 3.500 kg/ha, gerando uma previsão de colheita próximo a 136 milhões de ton.

    Os números demonstram que o incremento na produtividade foi, proporcionalmente, muito maior do que o aumento da área cultivada. Isso é tecnologia. Isso é profissionalização do setor agrícola.

    Elenco alguns outros aspectos que considero importantes para a abordagem proposta neste texto: I) a demanda por sementes aumentou consideravelmente neste período; II) o aumento da área de cultivo se deu prioritariamente no Brasil central, na região dos cerrados, ou seja, sob condições tropicais; III) a semente de soja carrega consigo todo potencial tecnológico selecionado nos programas de melhoramento, considerando o germoplasma em si (cultivares adaptadas a baixas latitudes, produtivas e com ciclo precoce maximizando o potencial da segunda safra), somado a evento(s) biotecnológico(s), e ainda com a possibilidade de carregar via tratamento industrial proteção contra pragas e doenças, nutrientes, inoculantes, enraizadores e eventuais outros produtos, iv) consequentemente, o valor agregado aumentou consideravelmente (assunto abordado na matéria central da última edição).
tabela Géri 2.jpg 725.46 KB

    Diante deste cenário e considerando a grandeza do negócio sementes de soja no Brasil, o planejamento do volume de produção se torna difícil, e logo surge o questionamento: por que não utilizamos eventuais sobras de semente não comercializadas em um ano agrícola na safra subsequente, a exemplo do que acontece, por exemplo, na cultura do milho?

    A resposta é simples. Os números apresentados no início desta matéria evidenciam que é necessário o uso de semente de alta qualidade, e resulta justamente neste aspecto a maior dificuldade, ou seja, na manutenção da qualidade fisiológica em níveis satisfatórios até a próxima, somado ao alto custo de armazenamento em condições tais que viabilize este processo.

   Isso nos remete  outro questionamento. Se é possível viabilizar em outras culturas, e podemos citar além do milho muitas espécies olerícolas, não é possível conseguir também em soja?

    Para responder estes questionamentos é preciso discorrer sobre algumas peculiaridades do processo de formação, maturação, colheita e atividades pós-colheita de sementes em geral e algumas características específicas desta cultura.

    Inicialmente é importante lembrar que as sementes são armazenadas desde a colheita até a época de semeadura. Na colheita as sementes são desligadas da planta-mãe, que até esse momento era seu ambiente natural, passando a ser responsabilidade do sementeiro a conservação nas melhores condições durante todo esse período. Mas, o armazenamento, na verdade, iniciou algum tempo antes da colheita, ou seja, na maturidade fisiológica.  O grau de umidade das sementes neste estádio inviabiliza a colheita e debulha mecânica. Não raras vezes as condições ambientais durante o armazenamento a campo são muito desfavoráveis para conservação da qualidade das sementes. Novamente usando o milho como contraponto, a colheita de sementes ocorre em espigas, ou seja, muito próximo da maturidade fisiológica
Se as sementes não forem armazenadas em condições favoráveis (aqui nos referimos também ao período entre maturidade fisiológica e colheita), podem perder sua viabilidade em pouco tempo.

    É importante lembrar que a longevidade (tempo que as sementes podem permanecer viáveis) é uma característica genética, variando entre espécies e entre variedades de uma mesma espécie. As espécies produtoras de grãos, em geral, são geneticamente de vida longa (alguns anos). Sementes de soja e amendoim, por exemplo, perdem mais rapidamente sua viabilidade no armazenamento do que sementes de trigo e milho (Vide alguns exemplos na tabela). Esse potencial está determinado pelo tempo em que certa proporção de sementes morre ou, inversamente, permanece viva. A morte de sementes, em um lote, não se dá ao mesmo tempo, por ser uma característica individual, o potencial de armazenamento afeta a porcentagem de viabilidade do lote de sementes.
tabela Géri.jpg 665.02 KB

    Outro aspecto essencial a ser considerado é a composição química da semente, característica que está intimamente relacionada com seu potencial de armazenamento. Sementes oleaginosas tendem a se deteriorar mais rapidamente do que as amiláceas. Comparativamente o conteúdo de lipídeos e de proteína em soja e muito maior do que as demais culturas apresentadas na tabela no texto, que armazenam suas reservas majoritariamente na forma de carboidratos.

    A forma, o tamanho e a localização das estruturas essenciais dentro da semente estão relacionados com a suscetibilidade aos danos mecânicos. Em algumas leguminosas, como soja e feijão, o eixo radícula-hipocótilo do embrião está posicionado de forma saliente, protegido somente por um tegumento delgado (Vide figura), ficando claramente exposto a impactos que podem causar dano mecânico à semente.

    Por ter um tegumento delgado, em sementes de soja, rachaduras do tegumento são comuns, seja pela deterioração sofrida no campo, em função de flutuações de umidade, ou pelas altas temperaturas de secagem, ou o próprio dano mecânico, quando as sementes estão secas, facilitando a penetração de micro-organismos e trocas de umidade durante o armazenamento. Morfologicamente os cereais possuem um grande endosperma (formado prioritariamente por amido) que acaba protegendo fisicamente o embrião (parte sensível) da semente.

    Partes da semente de soja
    Na fase de campo, as condições climáticas adversas, principalmente altas temperaturas, alta umidade e alternância dessas condições, que ocorrem no período que vai desde o PMF até a colheita, causam um aumento da velocidade de deterioração da semente de soja, além de retardar a colheita.

    Problemas relacionados à colheita tardia, velocidade do cilindro da colhedora, temperatura de secagem, umidade e temperatura de armazenamento, presença de fungos, roedores e insetos, tempo de armazenamento, transporte, entre outros, vão acumulando danos na estrutura da semente e influenciando no seu potencial de armazenamento.

    Os danos sofridos pelas sementes por meios mecânicos são considerados, junto com as condições climáticas adversas antes da colheita e o alto grau de umidade das sementes depois de colhidas, como fatores que mais contribuem para reduzir a qualidade das sementes. Danos físicos são todos aqueles causados às sementes por processos mecânicos de manuseio em equipamentos de colheita, transportadores, máquinas de beneficiamento, tratamento ou na própria semeadora. O dano pode ser provocado por choques ou impactos e/ou por abrasões das sementes contra superfícies duras ou contra outras sementes.
Géri tegumento.jpg 662.16 KB

    O dano pode ser imediato ou latente
    Em sementes de soja, o dano pode não provocar uma fratura visível, porém, devido à posição saliente do eixo embrionário, este pode ser impactado e o dano manifestar-se somente depois que a semente é colocada a germinar, originando uma plântula anormal.

    Durante o armazenamento propriamente dito, o fator mais importante que afeta a conservação das sementes é seu grau de umidade. Em soja, 13% já é considerado marginal. Essas sementes devem ser armazenadas com grau de umidade de 12% ou menos. Juntamente com a umidade das sementes a temperatura de armazenamento é outro quesito fundamental que tem relação direta com a preservação da qualidade das sementes. Lembrando que sementes são higroscópicas, ou seja, podem perder ou ganhar umidade em função de variações da UR do ar.

    Considerando as características apontadas, é preciso analisar a Curva típica de Perda de Viabilidade das Sementes, proposta por POWELL, cuja perda de potencial de germinação não é linear ao longo do tempo (vide figura). No início do armazenamento (Fase 1), a redução do potencial germinativo é lenta e permanece desta forma até o início da Fase 2, quando a redução da qualidade é muito mais intensa que na Fase 1. Ao chegar na Fase 3, por sua vez, a grande maioria das sementes já não possuem mais capacidade de germinar, com total inviabilidade de se usar o lote de forma comercial.

    Na figura do texto são apresentadas três simulações, onde pode ser observado que a maior longevidade de um lote de sementes é dada por variação na duração da Fase1, o que é conseguido com boas condições de armazenamento, juntamente com mínimo processo de deterioração ocasionado por fatores ambientais e de manuseio da semente até o inicio do armazenamento (qualidade inicial do lote).

"como soja e feijão, o eixo radícula-hipocótilo do embrião está posicionado de forma saliente, protegido somente por um tegumento delgado, ficando claramente exposto a impactos que podem causar dano mecânico à semente"


    Porém, é importante levar em consideração que se torna muito difícil produzir sementes de soja com qualidade, em quantidade, sem que haja exposição a algum fator adverso em maior ou menor grau, dificultando a preservação da qualidade para uso em safras subsequentes. Não podemos deixar de considerar que muitas empresas sementeiras estão localizadas em regiões com características tropicais (temperatura alta e ocorrência de chuva concentrada em determinados períodos).

     Em paralelo, os bancos de germoplasma, onde são conservadas preciosas coleções de genótipos de diversas culturas, demonstram que há tecnologia capaz de viabilizar a preservação de sementes, inclusive soja, por diversos anos. Mas, é preciso considerar que nestes locais os volumes de cada genótipo são pequenos e que as sementes são armazenadas com baixo grau de umidade (<8%) e com temperaturas muito baixas (negativas em alguns casos). Isso gera um custo energético bastante alto a não ser que o frio ocorra de forma natural.
Gráfico Geri 1.1.jpg 630.19 KB

    De forma comercial, é preciso utilizar condições de armazenamento semelhante àquelas utilizadas nos bancos de germoplasma para se viabilizar o uso de sementes de soja na safra subsequente àquela em que foi produzido? Certamente não. Porém, é necessário sim controle de temperatura (certamente não superior a 10° C) e de UR. Quanto maior a diferença entre temperatura externa do armazém e a temperatura desejada, maior o custo energético para manutenção das condições. 

    Em síntese, sementes de soja possuem uma série de características que dificultam armazená-las para uso na safra subsequente, a saber: 1) composição química com alto teor de lipídeos e proteína e baixa quantidade de amido; 2)  morfologia da semente com eixo embrionário praticamente exposto, protegido apenas por um tegumento delgado; 3) a frequente exposição a fatores ambientais adversos pós maturidade fisiológica; 4)a possibilidade de danificação durante a colheita e manuseio pós colheita; e, 5) os custos elevados de criação de condições artificiais de armazenamento com controle pleno da temperatura e da umidade relativa do ar.

    O desenvolvimento de cultivares com melhor potencial de armazenamento, o correto manejo agronômico na fase de campo, a adoção de técnicas de manuseio das sementes (na colheita e pós-colheita) com menor impacto de danificação e a redução do custo energético, aliado ao desenvolvimento de pesquisas nesta temática, poderão, no futuro, viabilizar economicamente o que hoje é viável apenas do ponto de vista de técnico. 
Compartilhar