No mundo agrícola, todas as culturas são importantes. No entanto, quando se trata de soja, o ouro da balança comercial brasileira nos últimos anos, qualquer anomalia observada na semente causa preocupação, uma vez que é o insumo primordial da formação das lavouras.
Na produção contemporânea tem sido encontrado, de forma frequente, sementes com diferentes tipos de manchas em seus tegumentos e/ou cotilédones. Haja vista as várias questões postas pelo setor sementeiro, que precisa conhecer qual o tamanho do obstáculo que possa surgir, torna-se necessário descobrir as conexões causais visando mitigar problemas.
Do que se trata? Pode ser uma limitação e trazer consequências para o potencial fisiológico? Enfim, qual é a causa-efeito das manchas?
Diante de desafios biológicos, a alternativa é recorrer a literatura pertinente ao assunto. Infelizmente existem alguns casos de vacância. Sendo assim, corre-se o risco do “achismo”. Mas, todos somos sabedores de que, na ciência, este termo não tem espaço, porque o prejuízo pode ser estratosférico. Portanto, tem que se investigar profundamente antes de se dar um veredito.
Serão anomalias da atualidade? Nem tanto assim. Determinadas manchas são velhas conhecidas do mundo da fitopatologia, do melhoramento genético e da tecnologia de sementes.
Dentre as expressões surgentes, as mais habituais, fáceis de identificar, e mais conhecidas dos analistas estão a mancha púrpura (agente causal o fungo Cercospora kikushii) e a mancha café (Vírus do Mosaico Comum da Soja).
Em 1863 foi descrito o gênero Cercospora, e várias espécies foram relatadas em 1954. A mancha púrpura foi descrita pela primeira vez em 1921, e depois em 1924. No ano 1925, o crestamento foliar de Cercospora e a mancha púrpura da semente de soja foram associados ao fungo necrotrófico Cercospora kikushii. Em 1950 foi descrito que nas sementes os sintomas são facilmente reconhecidos pela cor arroxeada (cor propiciada pela produção de cercosporina) nos tecidos superficiais e pequenas fissuras no tegumento de aspecto áspero e sem brilho. No Brasil, grandes estudos e contribuições foram realizadas pela Embrapa Soja para determinar padrões para os estados do Sul, com as porcentagens de tolerância, tanto para mancha púrpura como para a mancha-café. Entretanto, em 1984, estudos da entidade demonstraram que poderiam ser retirados dos padrões os índices estabelecidos para os dois tipos de manchas. Cercospora kikushii é considerado um fungo cosmopolita e no Brasil encontra-se em todas as regiões produtoras. Estudos mais atualizados demonstram sementes apresentando cor variando de roxo mais escuro à roxo-pálido e com rachaduras no tegumento e, ainda pode ser encontrado como mancha chocolate. Quanto aos efeitos na qualidade fisiológica são bastante controversos os estudos, porém, desde sempre evidenciaram menor germinação em sementes que sinalizavam a mancha roxa mais forte. Várias dissertações e teses estão sendo conduzidas para trazer à luz da época atual, com genética moderna, se afetam a viabilidade e o vigor nas sementes com mancha.
No caso de mancha-café ou derramamento de hilo, também se tem referência há muito tempo. Em 1924 foi relatada a ocorrência de manchas da mesma cor do hilo e distribuída irregularmente no tegumento de soja. Em 1967, restabeleceram a relação entre o vírus do Mosaico Comum da Soja (VMCS) e a ocorrência de sementes manchadas, embora em 1957 tenha tido a primeira relação, todavia, ignorada.
No Brasil, em 1955, ocorreu a primeira observação da presença do VMCS. Na década de 1970, na Embrapa Soja, surgiram os estudos iniciais demonstrando a transmissão do vírus por sementes de soja. Em 1992, a entidade publicou valiosas contribuições à produção de sementes na época. Dentre as conclusões de trabalhos realizados, foi confirmado que: o VMCS era a causa da mancha do tegumento de sementes produzidas em plantas infectadas; a cor da mancha geralmente corresponde à cor do hilo, embora algumas cultivares de hilo preto apresentaram manchas de cores preta ou marrom; pela ação ou mutação do VMCS podem ocorrer sementes completamente manchadas; não havia correlação entre sementes com manchas e a transmissão; as cultivares de soja suscetíveis ao VMCS, com a mesma taxa de sementes manchadas, podem apresentar transmissibilidade distintas.
Atualmente existem publicações confirmando estudos anteriores de que mutações espontâneas podem ocorrer e ocasionar a supressão na expressão da antocianina (ligada a cor do hilo) e, dessa forma, originar sementes de soja de cor preta ou marrom. Vários estudos demonstram não haver perdas na qualidade fisiológica dessas sementes.
Até aqui, todas bastante conhecidas e estudadas. Contudo, outros sinais não tão comuns estão sendo detectados, a exemplo de um escurecimento marrom de matiz forte no local de picada de percevejo, inclusive trazendo confusão com a mancha de antracnose (agente causal o fungo Colletotrichum spp.), fato que demanda confirmação de patologia.
Além disso, se tem um outro tipo de mancha, de tom acastanhado ou marrom mais claro, localizada no eixo-embrionário, situada mais ao extremo da radícula. Esta já tivemos algumas informações (apenas pessoais) de que existem em algumas cultivares e tem dependência de condições ambientais. Esta coloração mais escura que o normal é mais rara e tem a ver com um gene silenciador. A cor do tegumento amarelo é condicionada pela não expressão de pigmentos.
Por algum motivo este gene silenciador perde um pouco do efeito de silenciador e deixa escapar um pouco de cor. Ainda não se sabe ao certo a razão disso. Pode ocorrer especificamente com algumas tecnologias que virão no futuro e poderá ser mais frequente em cultivares. Precisa de atenção porque no teste de tetrazólio, na concentração recomendada, esta manchinha pode colorir mais o cilindro central (ponta da radícula) e o analista pode se perder achando que é deterioração por umidade, pelo tipo de lesão e pela proximidade de tonalidade. Nos demais testes, inclusive já testados para verificar a longevidade de armazenagem, esta mancha no eixo radícula-hipocótilo não trouxe qualquer indicativo de ser um problema ao vigor e viabilidade, desde que seja somente esta mancha nesta região e não associada com outros tipos de danos, principalmente, a deterioração por umidade.
Os portfólios de atributos físicos continuam. Tem surgido manchas com a cor variando de cinza a marrom claro, mas, o tegumento é brilhante, sem sinais de deterioração. Em circunstância mais singular, tem um tipo com a mesma coloração anterior, porém, ocorrendo em forma de círculo nas regiões de bordas dos cotilédones. Estas características em absoluto reduz a qualidade, a não ser que outros danos estejam juntos.
Por outro lado, ocorre a mancha nociva à qualidade fisiológica com coloração mais escurecida, tendendo à cor preta. Sobre a mácula, o tegumento parece se esgarçando (fissuras) e a semente fica bem fosca. Com efeito, este aspecto em qualquer teste traz a reação imediata de deterioração de boa parte dos tecidos ou semente com os tecidos mortos, o que dizima qualquer dúvida.
Todas as manchas têm o mesmo poder de ação? Tudo é relativo. Há uma gama enorme de reações. Vai depender do “modus operandi” e da maneira que se interpreta cada teste aplicado, ou em outras palavras, do tipo de investigação que se busca. Ler as entrelinhas dos testes pode representar muito porque a mancha pode não exercer efeito imediato na qualidade fisiológica, todavia, em alguma situação pode estar latente e se manifestar apenas em momentos de semeadura, deixando as plântulas mais fracas e sem vigor, detectável pelo produtor-cliente que reclama do produto.
É interessante observar que desde o início do século XX foram considerados alguns fatores hereditários e condições ambientais associados à ocorrência de manchas nas sementes. Hoje, as regiões de soja brasileira foram expandidas e lugares inimagináveis estão produzindo sementes de soja, muitas manchas-novidades estão surgindo. Mas, a ciência não está parada, as tecnologias recentes são céleres e adjuvantes de grandes soluções aos desafios. E, como citou Charles Darwin, “a ciência é uma verdade temporária”.