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A NÃO APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA COMERCIALIZAÇÃO DE SEMENTES

Edição XXIX | 04 - Jul . 2025
Felipe Di Benedetto Jr.-felipe@dibenedetto.com.br
   Advogado especialista em Legislação Brasileira sobre Sementes e Mudas; Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Produção e Tecnologia de Sementes; Assessor Jurídico da Associação dos Produtores de Sementes e Mudas de Mato Grosso do Sul (APROSSUL)

1. A Teoria Finalista e a Definição de Consumidor no CDC

   Nos termos do art. 2º da Lei nº 8.078/90 (CDC):

   “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”

   Para que se configure relação de consumo, é imprescindível que o adquirente do produto seja o destinatário final fático e econômico do bem — isto é, que o utilize para satisfazer uma necessidade própria e não para alavancar uma atividade econômica ou produtiva.

   O mesmo diploma legal, em seu art. 3º, define como fornecedor qualquer pessoa, física ou jurídica, que atue na cadeia de produção, distribuição ou comercialização de produtos.

   Entretanto, quando analisamos a figura do produtor rural que adquire sementes para cultivar, colher e comercializar sua produção agrícola, ou da revenda que adquire sementes para revendê-las a terceiros, não se pode falar em “destinatário final”.

   Ambos utilizam a semente como meio de produção ou objeto de atividade mercantil, o que, nos termos da doutrina e da jurisprudência majoritárias, descaracteriza a relação de consumo.

2. Jurisprudência Consagrada do STJ e dos Tribunais de Justiça

   O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já consolidou o entendimento de que o CDC não se aplica à aquisição de insumos agrícolas utilizados na cadeia produtiva:

   “Nos termos da jurisprudência do STJ, o produtor rural não deve ser considerado destinatário final no contrato de compra e venda de insumos agrícolas, motivo pelo qual não incide, nesses casos, o Código de Defesa do Consumidor.” (AgInt no AREsp 363.209/RS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15/06/2020, DJe 01/07/2020)

   No mesmo sentido, os Tribunais de Justiça de todo o Brasil têm reiteradamente afastado a aplicação do CDC a tais relações:

   “Não se configura relação de consumo nas hipóteses em que o produto ou serviço é alocado na prática de outra atividade produtiva, como no caso em que o produtor rural adquiriu insumos agrícolas para posterior colheita e comercialização, escapando à caracterização de consumidor final.” (TJMS – Apelação Cível nº 0801379-94.2015.8.12.0037, Rel. Juiz Luiz Antônio Cavassa de Almeida, julgado em 03/02/2021)

   O produtor rural que adquire insumos agrícolas não é destinatário final na relação de consumo e, em razão disso, conclui-se pela impossibilidade de aplicação das regras do Código de Defesa do Consumidor. (TJMG – Apelação Cível 1.0470.15.009756-1/001, Relator(a): Des.(a) Pedro Aleixo, 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/02/2020, publicação da súmula em 21/02/2020)

   A utilização de serviços ou aquisição de produtos com a finalidade de desenvolver a atividade produtiva caracteriza relação de insumo e afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor. (AGRAVO DE INSTRUMENTO 0801087-03.2022.822.0000, Rel. Des. Raduan Miguel Filho, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia: 1ª Câmara Cível, julgado em 02/08/2022.)

3. Legislação Especial: A Aplicação do Princípio da Especialidade

   A comercialização de sementes é regulada por legislação especial, mais precisamente pela:

  • Lei nº 10.711/2003 – Lei de Sementes e Mudas;
  • Decreto nº 10.586/2020 – Regulamento da Lei de Sementes;
  • Portaria MAPA nº 538/2022 – Normas complementares sobre padrões e garantias.

   Segundo o princípio da especialidade, previsto expressamente no art. 2º, §2º, da LINDB, normas especiais prevalecem sobre normas gerais em caso de conflito.

   A Lei nº 10.711, de 5 de agosto de 2003, estabelece normas para a produção, o beneficiamento e a comercialização de sementes e mudas no Brasil. Seu objetivo principal é garantir a qualidade desses insumos agrícolas, promovendo a segurança e a eficiência da produção agrícola no país. A lei define as responsabilidades dos produtores, comerciantes e órgãos fiscalizadores, além de estabelecer critérios para o registro, a certificação e a fiscalização de sementes e mudas.

   O Decreto nº 10.586, de 18 de dezembro de 2020, regulamenta a Lei nº 10.711/03, detalhando as normas e procedimentos para sua implementação. Este decreto especifica as responsabilidades dos produtores e importadores de sementes, incluindo a garantia dos padrões de qualidade, como a porcentagem mínima de germinação e a porcentagem máxima de sementes infestadas. O decreto também estabelece prazos de garantia que variam conforme a espécie de semente, promovendo maior clareza e segurança jurídica para os envolvidos na cadeia produtiva.

   Por sua vez, a Portaria nº 538, de 22 de dezembro de 2022, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), complementa o Decreto nº 10.586/20, definindo procedimentos operacionais e técnicos específicos para a execução das normas de produção, beneficiamento e comercialização de sementes. A portaria especifica prazos de responsabilidade para os produtores, reembaladores e comerciantes de sementes, conforme a espécie, e esclarece a transferência de responsabilidade para o detentor das sementes após os prazos estipulados. Além disso, estabelece critérios para a comprovação de recebimento das sementes e normas para o armazenamento adequado.

   Em conjunto, a Lei nº 10.711/03, o Decreto nº 10.586/20 e a Portaria MAPA nº 538/22 têm como finalidade assegurar a qualidade das sementes e mudas comercializadas no Brasil, garantindo padrões mínimos de germinação e sanidade. Essas normas visam proteger o produtor rural, assegurar a produtividade agrícola e manter a competitividade do agronegócio brasileiro. Elas também proporcionam um ambiente regulatório claro e seguro, facilitando o cumprimento das obrigações legais pelos diversos atores da cadeia produtiva de sementes e mudas.

   Logo, sendo o CDC uma norma de caráter geral, e a legislação sobre sementes uma norma específica e setorial, esta última deve prevalecer nas relações entre produtor, revenda e usuário agrícola.

4. Responsabilidade Técnica e Prazos Legais na Garantia das Sementes

   O art. 39 do Decreto nº 10.586/2020, em harmonia com o art. 109 da Portaria MAPA nº 538/2022, estabelece que a responsabilidade do produtor de sementes restringe-se à garantia de atributos físicos, fisiológicos e sanitários das sementes por prazos específicos, contados da data de recebimento das sementes pelo adquirente, conforme a espécie:

  • 30 dias – sementes de soja, feijão, algodão, etc.
  • 40 dias – milho, trigo, arroz, etc.
  • 60 dias – gramíneas forrageiras tropicais, etc.

   Após esses prazos, a responsabilidade transfere-se ao detentor das sementes (revenda ou usuário), conforme expressamente determinado em norma.

   Esse ponto é crucial: a legislação setorial delimita temporal e tecnicamente o risco da atividade, não podendo o produtor ser responsabilizado por fatores alheios à sua atuação, como:

- Armazenamento inadequado pelo usuário;
- Excesso de tempo entre entrega e plantio;
- Manuseio incorreto ou falhas no preparo do solo.

5. Diferenças Entre o CDC e o Regime Jurídico das Sementes

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6. O Papel da Documentação Técnica

   Para que o produtor de sementes possa exercer sua ampla defesa e demonstrar o cumprimento de suas obrigações legais, é imprescindível manter e apresentar, se necessário, os seguintes documentos:

  • Boletim de Análise de Sementes;
  • Termo de Conformidade;
  • Nota Fiscal com recibo de entrega;
  • Relatório de Controle de Qualidade.

   Essa documentação comprova que a semente foi entregue em conformidade com os padrões legais e dentro do prazo de validade do teste de germinação ou viabilidade.

7. Conclusão: O Equilíbrio Jurídico da Cadeia Sementeira

   A tentativa de aplicar o CDC à comercialização de sementes desconsidera a natureza técnica, regulada e profissional dessa cadeia econômica, além de conflitar frontalmente com a legislação especial vigente.

   Ao contrário do consumidor típico, o adquirente de sementes — seja revenda ou produtor rural — atua como agente econômico, integrando a cadeia produtiva agrícola. Assim, não é destinatário final, mas sim transformador ou revendedor, situação que afasta a incidência do CDC e atrai o regime técnico-normativo específico.

CONCLUSÃO
 
   Por fim, para segurança jurídica do setor e prevenção de litígios, é essencial que produtores, revendas e usuários estejam plenamente conscientes de seus direitos, obrigações e limites legais de responsabilidade, respeitando os prazos e condições estabelecidos pela legislação especial sobre sementes.

*Este artigo foi escrito por Felipe Di Benedetto Jr., e pode ser acessado diretamente através de: https://www.dibenedetto.com.br/a-nao-aplicacao-do-codigo-de-defesa-do-consumidor-na-comercializacao-de-sementes/

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