CTNBio consolida seu papel como guardiã da segurança em pesquisa no Brasil

Edição XXVIII | 01 - Jan . 2024
Thiago Bergmann Araújo-redacao@seednews.inf.br
   Nas décadas de 1980 e 1990, o mundo vivia as primeiras concretizações trazidas pela descoberta, alguns anos antes, da técnica de DNA recombinante: o sistema permitia que informações genéticas de uma espécie fossem inseridas no código genético de outra, introduzindo no organismo receptor as características desejadas vindas do primeiro. Era o advento da era dos transgênicos, um dos nomes mais conhecidos dos organismos geneticamente modificados (OGM).

   Ao mesmo tempo em que eles carregavam em si promessas de soluções para diversos problemas da vida do ser humano, despertavam quase que na mesma proporção preocupações sobre as implicações futuras de seu uso. Seriam seguras para o uso? Quais seriam suas consequências para o ambiente? Trariam algum mal para a saúde humana?
Consolidavam-se as iniciativas para proteger pesquisas que envolvessem o tema, de forma a promover um desenvolvimento seguro de tais tecnologias, além da proteção de trabalhadores envolvidos nas investigações. Ao redor do globo, entravam em vigor, também, legislações que buscavam normatizar a biossegurança nesses processos.

   Após tramitação de quatro anos, era promulgada, em 1995, a primeira Lei Nacional de Biossegurança no Brasil, que, em conjunto com o decreto que a regulamentava, criava a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), ente responsável por fazer a avaliação de segurança de produtos provenientes de organismos transgênicos. Em 19 de junho de 1996, a CTNBio realizava sua reunião inaugural.

   Apesar de contratempos enfrentados em seus primórdios, desde a sua criação, a comissão tem se firmado como um grande referencial na salvaguarda da biossegurança, tanto no Brasil quanto no exterior. Uma trajetória que, ultrapassando seus 25 anos, se mostra fundamental para a pesquisa científica no país e para o desenvolvimento e a adoção de tecnologias que impactam diretamente no dia-a-dia de todos os brasileiros.

   Conselho de especialistas
   A CTNbio é um órgão colegiado de caráter consultivo e deliberativo, tendo por função primordial assessorar o Governo Federal com apoio técnico na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB). O objetivo maior é avaliar a segurança de OGM e seus derivados, estabelecendo, além disso, normas técnicas e emitindo pareceres referentes à pesquisa e ao uso comercial desses OGM.

   Para chegar a essa finalidade, como órgão colegiado, a composição da CTNBio contempla a representatividade de diversos campos da ciência e da sociedade, contando com componentes ligados a áreas como saúde humana e animal, sanidade vegetal, meio-ambiente, biotecnologia e agricultura familiar; também é composto nomes indicados por diversos Ministérios de Estado, como Saúde, Agricultura, Meio Ambiente, Defesa e Relações Exteriores. Todos os nomes encaminhados para comporem o grupo devem possuir doutorado, tendo reconhecida expertise no setor ao qual representa.

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   Com esse espectro de pensamentos e especialidades, o comitê tem se confirmado, cada vez mais, como uma instância de avaliação científica da segurança dos OGM e sua utilização no setor produtivo, sua consequente interação com o ambiente e o consumo por seres humanos e animais. Isso ocorre após a avaliação de cada caso por essa junta de especialistas.

   “Foi uma honra ter servido ao Brasil nesse grupo e liderar pesquisadores tão seletos”, comemora Paulo Barroso, engenheiro agrônomo, doutor em Genética e pesquisador da Embrapa Territórios, tendo ocupado a presidência da CTNBio, por dois mandatos, até junho de 2023.

   A mesma opinião é compartilhada por Antônio Oliveira, professor da Universidade Federal de Pelotas, também agrônomo e doutor em Genética e representante suplente como especialista da área vegetal na comissão. O docente compara o grupo formado pela CTNBio, composto por pesquisadores de grande nome no país, com os conselhos dos antigos imperadores chineses, que buscavam para consultarem, por meio de testes diversos, os mais sábios e escolados cidadãos de diversas províncias. “Todos têm muito a expor, assim fica muito fácil aprender e compartilhar”, destaca.

   Segurança jurídica para gerar segurança em pesquisa
   A iniciativa do ser humano em melhorar a qualidade das espécies remonta a 50 milênios, prática que inicia quase que concomitantemente com a agricultura. Os experimentos ocorriam na base do acerto e erro, em busca dos atributos desejados, conforme explica um dos decanos da CTNBio, Alexandre Nepomuceno, agrônomo, doutor em Biologia Molecular e Fisiologia Vegetal e atual chefe-geral da Embrapa Soja. “Os seres humanos faziam isso sem conhecer nenhuma regra da genética”, conta ele, que ocupa a titularidade de uma das cadeiras representativas da área de Biotecnologia na CTNBio.

   Com o avanço da genética, passando por marcos como as pesquisas do frei Gregor Mendel e o sequenciamento genético, foi possível que o homem pudesse aprofundar-se em tal ciência e tecnologia. “Podemos ver esse impacto diretamente na evolução da produção, que chegou a dobrar em algumas espécies”, pontua Nepomuceno.

   No entanto, a adoção das técnicas que culminam na manipulação genética despertou, desde os princípios, o pensamento de que era preciso haver uma série de regramentos para sua pesquisa e a possível utilização de seus produtos. “O próprio criador de uma dessas tecnologias já dizia que era necessário ter normas regulando, pois não se sabia qual seria o efeito final”, pondera a médica veterinária Maria Lucia Dagli, doutora em Patologia Animal e docente da Universidade de São Paulo, outra das mais longevas integrantes da comissão, da qual também já foi presidente substituta.

   Também o Brasil, seguindo o exemplo de diversos países ao redor do globo, procurou regulamentar a análise de segurança dos chamados transgênicos. A primeira legislação foi promulgada em 1995, com a lei 8.974, que já previa a criação da CTNBio. No entanto, Maria Lucia lembra que esta norma não era condizente com o que era necessário de atribuição ao grupo: “As normas não eram adequadas para o que precisava ser feito para uma análise de segurança”.

   Um dos problemas, conforme recorda Nepomuceno, é que a primeira lei entrava em conflito com a legislação ambiental. Essa divergência se mostrou concreta quando a CTNBio aprovou a liberação de soja resistente ao herbicida glifosato, que já estava sendo plantada em países como os Estados Unidos, em 1996, e a Argentina, em 1997. Em 1998, ocorreu a aprovação no Brasil liberou, mas a questão foi levada à justiça.

   “O questionamento era se a decisão da CTNBio valia ou não”, conta. Nesse meio tempo, o plantio de soja transgênica ficou legalmente suspenso no país. Entretanto, isso não impediu que soja ilegal acabasse sendo adotada por agricultores brasileiros, vinda, especialmente da Argentina; isso gerou um apelido que é utilizado até os dias atuais, a “soja maradona”.

   Para reformar a situação, era instituída em 2005 nova lei, dessa vez de nº 11.105, chamada de nova Lei de Biossegurança, que trazia claramente as competências de decisão da CTNBio. “A nova lei criou uma nova forma, bastante ágil e relevante, para a comissão, baseada em ciência”, destaca a professora da USP. “É uma das leis mais assertivas do mundo”, avalia Nepomuceno.

   O novo texto constituía, assim, a conformação atual da CTNBio, contemplando a nomeação de 54 membros, sendo 27 membros titulares e outros 27 suplentes. Apesar de nas votações serem contadas apenas as opiniões dos titulares, todos  participam das reuniões e de suas discussões, conforme explica o chefe-geral da Embrapa Soja.

   São nessas sessões que ocorrem, de maneira geral, dez vezes por ano, mensalmente em que são avaliadas, caso a caso, as propostas submetidas ao comitê. Passam pelo crivo do grupo pesquisas e produtos que recorram à engenharia genética – também chamada transgenia – em seu decorrer, ou seja, acrescentem informação genética de outra espécie no código da espécie original para que esta obtenha qualidades específicas.

   Nepomuceno explica que o trâmite dentro da comissão não difere muito de outra instância de julgamento. “É como um tribunal”, brinca. O alvo é determinar se o produto final de uma pesquisa envolvendo transgenia é seguro para a saúde humana e animal e para o ambiente. Para isso, cada submissão feita ao comitê passa por pareceristas, é encaminhada para plenário para discussão e, depois, votada.

   “Cada um desses processos é cuidadosamente analisado”, relata Maria Lucia, ao lembrar que é realizado um trabalho bastante robusto, pois carrega em si muita responsabilidade. “Tudo é transparente”, pontua.

   O julgamento não ultrapassa barreiras técnicas. “Vamos até onde temos mandato”, diz o ex-presidente Barroso. Os quesitos levados em consideração são unicamente aqueles referentes à segurança da adoção da tecnologia. “Apesar de sermos muito questionados sobre fatores econômicos e sociais, não entramos nesses assuntos”, salienta ele, ao lembrar que acima da CTNBio, existe o Conselho Nacional de Biossegurança (CNB), este sim formado para julgar questionamentos de outra natureza.

   A CTNBio também emite o que é chamado Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB), que se constitui em um credenciamento recebido por instituições para desenvolver projetos e atividades que envolvam OGM e seus derivados. Salienta-se assim um fato da pesquisa de engenharia genética no Brasil: sua autorização se estende apenas a organizações. “No Brasil, CPF não pode mexer com biotecnologia”, destaca o decano, ao explicar que não é possível conduzir pesquisas do tema de forma individual no país.

   Decisões que impactam no cotidiano
   Apesar de ser um grupo técnico, que busca avaliar riscos de segurança trazidos pelos OGM, o poder de decisão envolvido em duas deliberações seguidamente atrai olhares de diversos setores da sociedade. Foram eles, inclusive, que geraram o impasse jurídico que colocou em xeque a atuação da CTNBio em seus primórdios. Por julgarem decisões que contém tantos interesses, as reuniões da comissão foram alvo de protestos e invasões por diversas vezes.

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   “As invasões são sempre emocionantes”, conta Maria Lucia. Alguns casos marcantes, lembrados por ela e por Nepomuceno, se relacionam à aprovação de produtos envolvendo culturas vegetais, como as avaliações de eventos genéticos de milho, soja, eucalipto e arroz, sendo que este ainda não tem evento transgênico aprovado. “Lembro de uma audiência pública de algodão, para a qual chegaram vários ônibus trazendo produtores todos vestidos de camisetas de algodão brancas”, rememora a pesquisadora da USP. Sobre essas mobilizações, ela pondera: “Nosso julgamento ia modificar a vida deles”.

   Hoje em dia, o Brasil já conta com mais de 200 organismos geneticamente modificados liberados. “Mais de 70% das sementes cultivadas no Brasil hoje são geneticamente modificadas”, informa Paulo Barroso.

   De fato, o trabalho realizado pelos membros da comissão tem impacto direto sobre a vida cotidiana dos mais de 200 milhões de brasileiros, não apenas em seu alimento, mas também em produtos farmacêuticos que utilizam tecnologia de engenharia genética para seu desenvolvimento. Além dos bastante citados casos da insulina e de alguns tipos de antibióticos, as vacinas que previnem a contaminação pelo coronavírus também passaram por avaliação da CTNBio.

   No período da pandemia, a comissão debruçou-se sobre diversos âmbitos do problema, intensificando seu trabalho especialmente no quesito das imunizações. “Eram reuniões, no mínimo, semanais”, conta Barroso, que estava à frente da CTNBio na época. A experiência também é relatada pelo professor Oliveira, que foi parecerista do processo da vacina da AstraZeneca. “Quando se aprova uma vacina como essas, quantas pessoas são impactadas?”, questiona ele.

   Consolidada para colaborar com o futuro
   Desde a sua primeira formação, a CTNBio tem sido protagonista em diversos momentos chave para o agronegócio brasileiro. “Os transgênicos têm hoje a capacidade de dar resposta para diversos problemas da humanidade”, ressalta o professor da UFPel, ao destacar principalmente a questão da segurança alimentar. “Como não podemos voltar a tamanhos populacionais de mil anos atrás, precisamos de estratégias para alimentar essa crescente população”, continua.

   Com características privilegiadas de área, localização e condições climáticas, nosso país cada vez mais confirma-se em sua vocação para a agropecuária. “O Brasil vai ser o maior produtor de alimentos do planeta”, avalia o chefe-geral da Embrapa Soja.

   Por isso, o decano da CTNBio alerta que situações como a ocorrida entre 1998 e 2005 não podem voltar a ocorrer: “É necessário manter a biossegurança, mas não podemos impedir a evolução tecnológica”. Segundo Nepomuceno, esse período até hoje é sentido, pois atrasou a formação de pessoal especializado e impediu o desenvolvimento de tecnologias com a participação brasileira. “Se a gente não usar tecnologias como a transgenia e a edição gênica, vamos ficar para trás novamente”, prossegue.

   Entre os temas que possivelmente vão ocupar a pauta da comissão, estão eventos biotecnológicos que promovam uma conservação ainda maior de florestas e demais biomas, ou seja, que tenham uma produção mais eficiente em área já usada, para evitar o avanço em áreas de preservação. Também se vislumbra no horizonte a avaliação de plantas resilientes às mudanças climáticas, especialmente no que tange o déficit hídrico. Outro campo pródigo é o de bioinsumos, como leveduras modificadas que podem elevar a produção de etanol, por exemplo.

   Avaliando a atuação da comissão junto à sociedade brasileira, Maria Lucia vê com alegria que os OGM têm encontrado uma boa aceitação nos últimos tempos, após os impactos do primeiro contato com a opinião pública. “Com certeza, o trabalho aberto e transparente da CTNBio proporcionou uma mudança nessa percepção”, diz.

   “Aprendemos muito com os pontos de vista diferentes”, considera Nepomuceno. Para Antônio Oliveira, é visível entre os integrantes do comitê a satisfação em poder, por meio das decisões tomadas em colegiado, colaborar na vida dos brasileiros: “Podemos contribuir com o bem-estar da sociedade. É algo que todo o cientista busca”.

   Para Paulo Barroso, mesmo com a atuação discreta da CTNBio, seu julgamento puramente técnico das questões à comissão levadas permite alta segurança por parte da sociedade. “Uma decisão da CTNBio é como um carimbo de confiança para o povo brasileiro”, conclui.

   Dessa maneira, garantindo análises rápidas, com profunda expertise por parte de seus integrantes e respeitando a composição democrática com a qual foi constituída, a CTNBio confirma-se como uma das instâncias mais respeitadas da ciência brasileira, como lembra Maria Lucia Dagli: “A CTNBio é um modelo para o mundo”.
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