O tegumento de sementes de soja e o seu impacto na qualidade

Edição XXII | 03 - Mai . 2018
Maria de Fátima Zorato-fatima@mfzorato.com.br

    O tegumento em algumas cultivares de soja tem sido bastante comentado nos últimos tempos na produção de sementes, trazendo preocupações quanto ao potencial fisiológico. Qual a razão da inquietude? 

    Sabemos que semente de soja, como um todo, é o embrião formado por três partes: tegumento (cobertura protetora), tecido de reserva (cotilédones) e eixo-embrionário (plúmula, hipocótilo e radícula). Dentre estas, o tegumento tem distinção das demais no que se refere às suas células, porque são mortas. Mas, isto quer dizer que não tem importância na qualidade? Ledo engano. O envoltório da semente tem seu papel significativo tanto no processo de germinação atuando como regulador de absorção de água, quanto na proteção contra os microrganismos e na danificação mecânica, entre outras funções. 

    Existe variabilidade nos genótipos de soja quanto à permeabilidade do tegumento e  relação de absorção de água, a qual pode ser controlada pela presença, quantidade, forma, funcionalidade, tamanho de poros distribuídos em toda a superfície do tegumento e quantidade de material ceroso da epiderme.    

    Ora, se acontece a permeabilidade no tegumento intacto, o que pode suceder quando esta frágil cobertura tem rasgos nem sempre uniformes, podendo ser de diferentes tamanhos, localizados em qualquer parte da semente? Quem é este rasgo? Quando ocorre perda no potencial fisiológico? Vejam bem, não estamos tratando apenas dos rompimentos relacionados aos ciclos de absorção e perda de água quando a soja ainda está em campo sofrendo a deterioração, situação que rasga os tecidos do tegumento, geralmente na mesma direção; nem mesmo dos rasgos que ocorrem a partir do hilo, provocados por ataques intensos de Cercospora kikushii, fungo causador de mancha púrpura na semente. Estamos discorrendo sobre o rasgo do tegumento em algumas cultivares, ligado ao fator genético, já percebido na fase de desenvolvimento R6 e que pouco se conhece a respeito.  Precisamos entendimento e cautela quanto a este tipo de rasgo porque, se não bem esclarecido, pode carrear prejuízos ao setor de produção de sementes. É dependente de condições ambientais vigentes na fase de maturidade fisiológica até a colheita e, exemplificando, foi analisada amostra de cultivar suscetível e o tegumento com mais de 70% de rasgos permaneceu com elevado vigor e viabilidade até o final do período de armazenamento. 

    As indagações, por que ocorre e em quais condições, ainda permanecem obscuras. Acredita-se que um conjunto de fatores, inclusive associados ao volume de água durante a granação, estejam envolvidos. A suposição é de que não se trata de efeito isolado. 


    CONSTITUIÇÃO DO TEGUMENTO

    Como o assunto é referencial ao tegumento, torna-se basilar uma melhor compreensão sobre o mesmo e, para tal, necessitamos recordar alguns aspectos anátomo-morfológicos que estarão embasados em estudos clássicos de pesquisadores renomados e encontram-se publicados.

    O tegumento origina-se de dois integumentos do óvulo, a primina (integumento externo) e a secundina (integumento interno). Da primina, origina-se o tegumento externo da semente, a testa, que apresenta característica espessa e resistente, a qual confere proteção à semente. Por outro lado, da secundina, forma-se o tegumento interno, a tegma, com aspecto delgado e delicado.

    Através de microscopia eletrônica, num corte transversal ao tegumento da superfície abaxial dos cotilédones, camadas foram diferenciadas a partir da superfície: a cutícula - camada cerosa na parede externa das células da epiderme; a epiderme - uma camada paliçádica constituída de células esclerenquimatosas, denominadas macroesclerídeos. Estas são células alongadas perpendicularmente à superfície do tegumento, possuindo paredes celulares grossas e perfuradas na porção superior. As células paliçádicas formam uma camada contínua envolvendo a semente, exceto a região do hilo, onde aparece uma segunda camada paliçádica.  A camada paliçádica é importante para a absorção de água pela semente, que pode ou não ocorrer porque tem dependência de composição química, do arranjo e substâncias intercelulares.


    Abaixo da epiderme, tem a hipoderme - uma camada unicelular formada por osteosclerídeos, que são células esclerenquimatosas com parede celular de espessura desuniforme.  Constitui uma camada de suporte com considerável espaço intercelular. 

    Parênquima lacunoso - a última camada no tegumento é pluricelular, formada por uma sobreposição de 6 a 8 células parenquimatosas. Estas células estão tangenciais à superfície do tegumento e se caracterizam por possuírem uma fina parede celular e ausência de protoplasma. Foram observadas diferenças no formato e organização dessas células. A literatura ainda carece de informações sobre características de resistência do tegumento relacionadas a esta camada. 

    Quando consideradas as camadas em conjunto, a espessura do tegumento variou entre 70 a 100 micrometros, existindo diferenças entre as cultivares. No entanto, dentro de cada cultivar, essa característica física é constante, sendo controlada geneticamente. No estudo, o local de produção e o tamanho da semente pareceu não ter influência.  


    RASGO DO TEGUMENTO – FATOR GENÉTICO

    Deve-se enfatizar que, no passado, este rasgo genético foi evidenciado em algumas cultivares convencionais, e de forma especial, após Lei de Proteção de Cultivares, em 1997, quando mais cultivares começaram a ser disponibilizadas aos produtores. Por que o interesse desta colocação? Porque ouve-se que a tecnologia contemporânea está sendo precursora deste defeito, que é visualmente uma característica física, mas que pode ter implicações no atributo fisiológico. A diferença na atualidade é que aumentou, em proporções sem precedentes, a quantidade de liberações de cultivares  por programas de melhoramento, indiferentes ao obtentor, devido à competitividade de mercado. 

    E, neste contexto geral de liberações de muitos genótipos, alguns em especial, e bem maior quantidade do que nas décadas anteriores, têm mostrado rasgos no tegumento. Entretanto, algumas particularidades estão chamando a atenção nos laboratórios de análise de sementes.  A mesma cultivar pode ou não trazer esta característica. O que provoca isso?


    Outro fato de extrema importância se relaciona à situação encontrada no local do rompimento, que, não necessariamente, revela apenas células deterioradas. A hipótese provável é de que as flutuações da umidade relativa do ar circundante também exerçam efeito determinante sobre o rasgo de tegumento, principalmente quando a matéria-prima fica armazenada em campo, após a desconexão vascular com a planta-mãe, época inicial do processo de deterioração. 

    A permanência no campo sob condições climáticas adversas vai se transformando a cada dia e contribuindo para o aumento do nível de deterioração no local de rasgadura, a qual facilita a permeabilidade de água. Por outro lado, se as condições em campo forem satisfatórias, sem alternâncias acentuadas de umidade relativa do ar, via de regra, nem se percebe o rasgo em qualquer teste realizado. Pode-se passar completamente despercebido, porque não afeta a qualidade da semente. Portanto, tem ação distinta, dependente de condições ambientais.

    Uma luz no entendimento, talvez via estudos realizados no passado, quando demonstrada a camada paliçádica podendo se apresentar descontínua e a hipoderme tornando-se visível. Esse rompimento da camada paliçádica foi atribuído à secagem excessivamente rápida do tegumento em relação aos cotilédones, e sua ocorrência mais frequente em algumas cultivares do que outras, o que sugere o controle genético. Pode ser uma chance factível? Coincidência ou não, as regiões de Cerrado no Brasil Central, com temperaturas mais elevadas, são os locais que têm expressado maior quantidade de sementes com rasgos no tegumento, nas cultivares mais suscetíveis. Porém, necessita-se muito mais estudos, com genótipos atualizados para o domínio do tema. Como conhecemos, o tegumento da semente é constituído por tecido materno, reflete o genótipo da planta-mãe e ainda é considerado como o essencial regulador das interações da estrutura interna da semente e o ambiente. Portanto, fundamental no que tange à qualidade do produto.


    SEGURANÇA DE BONS RESULTADOS

    Dentre os testes realizados na aferição de qualidade nos laboratórios de análise de sementes, o teste de tetrazólio é o que mais deixa caracterizado os diferentes tipos de desenho do rasgo nos locais de incidência. São inúmeras configurações visualizadas, uma praticamente sem a marca do desenho e nada de deterioração, ou algumas variando apenas para marcas superficiais e outras estendendo até camadas mais profundas e deteriorando. 

    Não  que  os demais testes não detectem o rasgo do tegumento. Entretanto, existe maior possibilidade de desconfiguração de seu desenho característico. Seja por não evidenciá-lo, sem células deterioradas, ou, ao contrário, devido à evolução das células deterioradas que tomam outra proporção. Um dos testes que mais descaracteriza este rasgo é o teste de envelhecimento acelerado, porque as condições expostas à semente são mais críticas e favorecem reações, acelerando desta maneira a manifestação no local do rasgo e a presença de uma massa de células deterioradas e, normalmente, com ocorrência de fungos do gênero Aspergillus spp.

    Ainda com relação ao tetrazólio, se observou na região do rasgo a permanência de apenas uma camada bastante delgada e, sob microscópio biológico, não foi revelada quebras nesta película fina. Isso pode auxiliar na explicação do motivo de sementes apenas com este rasgo genético não entumescerem no teste de hipoclorito de sódio realizado para verificar danificações de máquinas. No entanto, advertências devem ser feitas. Pode acontecer de a semente, além de ter o rasgo, receber um dano mecânico (esta entumesce no teste de hipoclorito), ou uma semente que dentro do rasgo recebeu uma picada de percevejo (pode entumescer também) ou semente esverdeada ou verde que apresenta o rasgo, característico da cultivar que ora está sendo analisada. E, na pior hipótese, mas não descartada, há a possibilidade de somatório de danos em semente de tegumento rasgado, complexo que favorece redução do vigor e viabilidade/germinação. 

    Cuidados especiais devem ser dados aos rasgos que se instalam próximos ou mesmo sobre a extremidade radicular, região de células meristemáticas, podendo afetar o desenvolvimento da raiz, em caso de deterioração. 

    Talvez, num futuro não tão distante, teremos equipamentos de imagem que ajudem na descoberta de mais dados a respeito do rasgo de tegumento e seu impacto na qualidade. Vale ressaltar um fato curioso: é que quando levado ao teste de Raio X não foi capturada a imagem do rasgo na semente, sendo no local detectada uma massa uniforme, como se o tegumento estivesse intacto. Merece muito estudo.

    Uma visão ampla da semente pode fazer toda a diferença nas ações empreendidas. A soma de todo o conhecimento é que dará a confiança necessária para que a análise decorra de maneira normal, gerando resultados de êxitos.


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