A missão da minha mãe na minha vida

Edição XXII | 03 - Mai . 2018

    Muita gente pensa que é irrelevante, mas missão é coisa séria. Pessoalmente, levei um bom tempo para entender a dimensão exata e a importância prática que é ter uma boa missão, além da necessidade de persegui-la com tenacidade, para alcançar algum sucesso. 

    É verdade também que boa parte das empresas tem sua missão pendurada num quadro na parede, junto com a visão e seus valores. Contudo, muitas se distanciam dos princípios basilares e acabam relegando ao segundo plano todos esses aspectos. Com isso, navegam ao sabor da maré do mercado e das circunstâncias.

    Tenho observado que a vida pessoal também tem obedecido essa lógica. Por conseguinte, a missão das organizações está diretamente vinculada às pessoas que fazem cada uma delas, principalmente seus fundadores. Não pode ser algo simplesmente inventado e criado porque é moda. Precisa fazer parte do DNA e, por consequência, nortear as estratégias e as ações.


    Na metade do trajeto. Feliz, mas muito por fazer 

    A nossa missão vem da nossa história, da estrada que percorremos e da estrada que outros percorreram para que nós pudéssemos fazer a nossa parte melhor. De sorte que cada um está a uma altura da jornada, em parte por seus méritos e em parte pelo esforço de diversas pessoas.

    Pessoalmente, me considero um sujeito na metade do trajeto. Com humildade, olho para trás e vejo que trilhei um caminho bacana. Me orgulho das estradas que abri e também das muitas que andei, abertas por outros.

    Algumas vezes andei em linha reta e outras vezes ziguezagueando. Tive momentos que avancei rápido e outras que andei devagar ou para os lados, sem progredir muito. Tive períodos de crescimento, de aprendizagem e outros de fortalecimento.

    Embora sabedor de que, diante da realidade da roça onde nasci, eu tenha evoluído, ao olhar para frente, me alegro, percebendo que ainda tenho muito o que fazer e avançar. Quando miro o horizonte percebo que ainda fiz pouco. Mesmo me sentindo satisfeito com o que já alcancei, efetivamente posso e devo fazer mais. 

    É justamente esse sentimento de desobrigação, de que talvez você não necessite, mas pode e tem vontade de fazer mais, de esticar a estrada e construir caminhos novos, que emprestam a energia diária para enfrentar as adversidades e agir.

    Assim, me considero realizado e ao mesmo tempo insatisfeito. Aliás, o ser humano nunca se contenta totalmente. Isso é que o faz avançar e descobrir. É meio um paradoxo entre achar bom e querer ou perceber que se pode, ou se merece, mais. 

    Comecei então a pensar em como cheguei nessa parte da minha estrada particular e constatei que, antes das agruras e das dificuldades, ou apesar delas, tenho sido um sujeito privilegiado. Dado que, apesar do rigor e das limitações, nunca me faltou o essencial para atender as necessidades básicas de moradia, saúde, alimentação, educação e pertencimento.


    O Cenário

    Além das muitas pessoas e circunstâncias que me forjaram a ser quem eu sou, há um aspecto em particular que fez uma diferença enorme na minha vida e da minha família (e provavelmente na vida dos meus descendentes): a missão que minha mãe colocou para si, no início dos anos 40 do século passado. 

    Não se satisfez e nem se conformou com o padrão passivo estabelecido para a mulher no Brasil eminentemente rural da época, em que ‘lugar de mulher era em casa cuidando dos filhos e ajudando o marido na roça’.

    Nascida numa família grande, era a filha mais velha de uma trupe de 11 irmãos, e mesmo com excelente capacidade de aprendizagem, perspicácia e muito interessada pelo conhecimento, teve de abandonar os estudos na 5ª série e ajudar a família nas lidas da lavoura, permitindo desse modo que seus 10 irmãos também pudessem ser alfabetizados.

    Contudo, teve a sorte de que no último ano da escola, na sua sala tivesse apenas mais um aluno, igualmente inteligente. O professor, pago com os produtos vendidos na cidade, se esmerou ao máximo e ensinou praticamente tudo o que sabia para aquelas duas crianças.

    No ano seguinte, já fora da escola, muitas vezes chorava quando via seus irmãos voltando da aula. Ela, embora sedenta por conhecimento, estava impedida de continuar os estudos, pois precisava ajudar em casa, emprestando a sua força física no trabalho diário.


    Uma missão audaciosa de 70 anos atrás.

    Nesse cenário, ainda uma adolescente que teve interrompido o sonho de ser contadora (adora matemática até hoje), estabeleceu uma missão no mínimo audaciosa: de que custasse o que fosse necessário, mas no dia que tivesse filhos, eles teriam a oportunidade de estudar e se formar.

    O fato de ter absorvido dois anos em apenas um, no último período da escola, somado à sua tenacidade, foi o suficiente para fazer dela uma pessoa procurada inúmeras vezes por vizinhos, amigos e até comerciantes, para fazer cálculos de juro, cubagem de madeira ou de medição de terra. Isso numa época em que engenheiros, administradores ou economistas formados era algo raro naquele interior longínquo onde morávamos.

    Por consequência, obteve papel decisivo no seio familiar, mesmo numa época machista e eminentemente patriarcal. Soube respeitar o status dominante, mas utilizou o conhecimento como diferencial. Desse modo, também angariou a concordância e apoio irrestrito do meu pai para esse desafio de formar os filhos.

    Me sinto uma pessoa privilegiada por ter tido pessoas assim na minha vida. Alguém que definiu uma missão dessa natureza para si, sem nunca tê-la abandonado, mesmo nos momentos difíceis, quando as necessidades primárias muitas vezes estavam em risco.

    Estimulou para que eu e meu irmão, cada um a seu tempo, fôssemos para um colégio interno aos 16 anos. Aguentou a saudade e o choro de mãe protetora, com firmeza, sem se afastar do seu propósito.

    Na prática, essa missão clara, e a perseguição perseverante na sua execução, acabaram ajudando a todos da família. Muito por essa questão, somos capazes de dar uma velhice digna para ela (completou 87 anos em abril, ainda em plena saúde), assim como demos para nosso pai.

    Ademais, essa decisão de mais de 70 anos atrás, tem influenciado a vida de meus filhos, assim como certamente influenciará várias gerações de nossa família, em função da mobilidade social que proporcionou.

    Como é de se imaginar, são as missões pessoais que movem o mundo, servindo para dar sentido para si e criar benefício para os demais. Ainda está em tempo de estabelecer a sua. O universo aguarda. Não decepcione.

    Até a próxima.


Compartilhar