Um tema inquietante

Edição XXIII | 04 - Jul . 2019

    Na agricultura mundial, são as unidades familiares que predominam, sejam elas pequenas, médias ou grandes. O fato é que o tema da sucessão tem sido de grande preocupação, seja em função do aumento médio da idade dos produtores ou da falta de novos ingressantes.

    O empreendedorismo, seja urbano ou rural, é um tema que me atrai há um bom tempo. De um lado como interessante área de estudo e de outro como filosofia de vida pessoal. 

    É óbvio ou aparentemente compreensível que todo empreendedor(a), pai ou mãe, veria de bom grado que seus descendentes perpetuassem seus negócios. Principalmente aqueles bem-sucedidos. Muitos deles criados com enorme esforço, sacrifício pessoal e da própria família, além do empenho de uma vida toda.

    Não há regra ou verdade absoluta nesse campo. Mas creio que é exatamente nesse sentido que surge a necessidade da reflexão, mas ressalto: sem passionalidade. Filosofar sem avaliação, compromisso ou cobrança pessoal. Como alguém que não tem a obrigação de concluir ou indicar a melhor ou a pior alternativa. Apenas refletir para discernir.


    Cada um tem a sua história

    Devemos ter em mente, antes de tudo, que cada um tem sua história de vida. É isso que faz de cada pessoa um sujeito único. A minha história não é a história das minhas filhas, por exemplo. Elas terão as suas próprias, à sua maneira. Também penso que devemos ter o máximo de cuidado, e talvez de humildade, para deixar que elas as construam, com o seu esforço, suas crenças, seus acertos e seus erros. Não creio que, como pais, tenhamos o direito de dizer o que precisam fazer da sua história.

    Acredito, sim, que a história de vida (de todos nós) seja uma corrida de bastão e pode servir de inspiração ou de desalento. Cada um faz um pouquinho e colabora (ou não) na vida do seu descendente. Principalmente em relação aos valores morais e à filosofia de vida. Tenho isso claro e sei em boa medida como meus pais e outros vários, alguns antes deles inclusive, contribuíram para a minha vida. Isso sim, é um dever irrecusável que nos assiste.

    Mas não temos a obrigação (muito menos o dever) de oferecer e entregar para nossos filhos apenas aquilo que nós entendemos como “o melhor” e tampouco legados financeiros e de empreendimentos. 

    Nossa experiência só é experiência porque obviamente a vivenciamos. É exatamente isso que nos faz acreditar que a nossa vivência é tão importante e muitas vezes nos coloca na condição (algumas vezes prepotente) de dizer o que devem fazer. Como verdade única.


    Um fardo exagerado

    Imagino na carga que nós, pais, involuntariamente transferimos para nossos filhos. Nosso eventual sucesso pode exercer pressão desmedida e sufocante sobre suas vidas (mesmo que subliminar). Muitas vezes como um fardo para eles. É nisso que frequentemente exageramos, ao acreditar que eles tenham determinada obrigação de agradecimento pela oportunidade que lhes é oferecida.


        Alguns obviamente assumem com afinco, gosto e determinação e fazem dessa oportunidade parte da sua própria trajetória. Construindo, a partir desse legado, sua história, carregando o bastão e dando vivência própria para ele.


    Observo muitos filhos e filhas de empresários de sucesso. Fico imaginando se esses descendentes pudessem livremente escolher o que fazer e como fazer, se realmente seguiriam os passos de seus pais. Temo acreditar que, num primeiro momento, buscariam construir suas próprias verdades (errando e acertando) ao invés de seguir as verdades deles. 

    Muitos, talvez (contrários à nossa capacidade de compreensão), sequer gostariam de assumir suas empresas ou seus negócios. Mas muitas vezes aceitam e tentam, às custas de sua infelicidade, apenas para não contrariar ou decepcionar as expectativas dos demais.

    Alguns obviamente assumem com afinco, gosto e determinação e fazem dessa oportunidade parte da sua própria trajetória. Construindo, a partir desse legado, sua história, carregando o bastão e dando vivência própria para ele.

    De outro lado, embora sejamos, em boa medida, felizes pela felicidade (à nossa maneira) dos nossos filhos, precisamos procurar entender o que, no final das contas, interessa: o quanto nossos filhos serão felizes com sua trajetória e suas próprias escolhas. Não nossas escolhas.

    Creio que podemos (e devemos), acima de tudo, dar condições de discernimento, oferecendo conhecimento e inspiração, seja através da educação formal ou da experimentação (gerando experiências das mais diversas para eles), orientando naquilo que seja essencial, mas nunca dirigindo-lhes a vida.


    A comunicação como crítico na sucessão

    O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) lançou, em meados de 2018, um Texto para Discussão em que levanta um conjunto de questões inquietantes sobre o tema. Talvez o mais relevante seja exatamente os aspectos críticos do processo sucessório.

    O texto aponta três pilares do processo sucessório, quais sejam: a transferência da gestão, a divisão dos rendimentos provenientes da atividade e a transferência patrimonial. Contudo, aponta a comunicação como um fator preponderante para a eficácia do processo em si, o que parece ser realmente um fator decisivo para o sucesso ou insucesso da indispensável empreitada.

    Creio piamente que a predisposição em discutir e comunicar abertamente esse tema entre os membros da família é indispensável para que ele avance, não crie mal-estar ou mesmo deixe de ser discutido, o que seria entregar à própria sorte o desfecho de um capítulo inevitável.

    O texto aponta a necessidade de se iniciar por discutir os interesses individuais de cada membro, os princípios e valores buscando a continuidade do negócio, mas principalmente a harmonia da família. Esse último, o mais relevante de todos e muitas vezes o mais negligenciado.


        (...) o acordo familiar só se tornará viável caso seja possível chegar a um consenso sobre o que é ser justo (fair) e o que é ser equitativo (equal) no momento em que se definem os três pilares da transferência entre as gerações.


    Para os autores, o acordo familiar só se tornará viável caso seja possível chegar a um consenso sobre o que é ser justo (fair) e o que é ser equitativo (equal) no momento em que se definem os três pilares da transferência entre as gerações. Mas para isso precisa haver predisposição para colocar em pauta desde cedo o tema. Caso contrário, confusão certa à vista.

    Até a próxima

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