A pirataria de sementes ainda ameaça o agronegócio

Edição XXVIII | 02 - Mar . 2024
Silmar Teichert Peske-silmar@seednews.inf.br
José de Barros França Neto-jose.franca@embrapa.br

   O que seria dos negócios de sementes sem normas, leis, padrões, fiscalização, penalidades e concorrência?   


   A Evolução
   Pode-se considerar que o sistema brasileiro de sementes começou a ser incrementado com base no Plano Nacional de Sementes (Planasem), elaborado no início da década de 1970 pelo Ministério da Agricultura e Pecuária.

   O Planasem contemplava o treinamento de pessoal, controle de qualidade, fiscalização e pesquisa, entre outras atividades. Neste contexto, dezenas de profissionais foram enviados ao exterior principalmente para a Universidade Estadual do Mississippi (EUA), para estudos em nível de mestrado e doutorado, assim como visitas de estudo.

   Inicialmente, como havia a necessidade de sementes, e os meios para produzir em quantidade e qualidade eram deficientes, o sistema contemplou uma classe de sementes denominada de “fiscalizada”, a qual não possuía controle de geração e cujos padrões de qualidade física e fisiológica eram inferiores aos atuais. Isto evoluiu de tal maneira que hoje as classes de sementes possuem controle de geração, e os padrões de qualidade são bastante superiores, tanto em relação à germinação das sementes como à presença de sementes de plantas daninhas e sanidade. Isso possibilita, inclusive, a comercialização das sementes com o vigor avaliado.

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   Após regulamentar, por lei, a produção e o comércio de sementes, o país instituiu a Lei de Proteção de Cultivares (LPC), que, em resumo, reconhece o trabalho do melhorista, conferindo uma proteção à sua cultivar por 15 anos. Isto é considerado um dos grandes avanços que impulsionaram a produtividade dos cultivos, sendo que em soja o país é líder mundial em produção e em produtividade.

   Antes da LPC, havia poucas cultivares lançadas anualmente no mercado, o que era feito principalmente por instituições estatais. Atualmente, lançam-se, por ano, várias cultivares para diferentes regiões do país, principalmente pela iniciativa privada. O reconhecimento do trabalho do melhorista possibilitou a entrada da iniciativa privada no negócio de sementes, que normalmente licencia suas variedades a produtores de sementes para a comercialização mediante um pagamento denominado royalty.

   Além da LPC, há a Lei de Patentes, que protege as inovações tecnológicas por 20 anos e vai até o grão, ou seja, o agricultor, mesmo não comprando semente, deverá reconhecer o trabalho do melhorista por meio do recolhimento de uma Taxa Tecnológica (TT). Há várias culturas que possuem eventos patenteados, como soja, milho e algodão. Uma variedade de determinada espécie pode possuir proteção pela LPC e pela Lei de Patentes.

   Estamos em 2024, e, com mais de meio século da implantação do Planasem, podemos considerar que esse programa é um caso de sucesso dentro do agronegócio brasileiro. Isso pode ser evidenciado pela quantidade e qualidade da semente produzida no país, o que propicia, junto com outras práticas agronômicas, altas produtividades dos cultivos, sendo alguns com liderança mundial, como soja e algodão.

   Taxa de uso de sementes comerciais (TUS)
   O reconhecimento do trabalho do melhorista é concretizado por meio da venda de sementes de uma cultivar protegida, em que um valor, ao redor de 10% do preço da semente, é destinado ao programa de melhoramento que criou e desenvolveu a cultivar. Assim, quanto maior o porcentual de semente comercial utilizada pelo agricultor (TUS), maior será a receita do programa de melhoramento para investimento.

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   A TUS é um percentual da semente comercial em relação à área total cultivada, variando entre os estados do país, dos cultivos e do tipo de polinização (híbrido). Assim, tomando como exemplo o estado do Rio Grande do Sul, para o cultivo da soja, a TUS é de 45%: ou seja, dos 6,5 milhões de hectares que se cultivam no RS, 2,9 milhões são com sementes que o agricultor compra, possuindo endereço, genética conhecida, alta germinação e vigor, livre de sementes de plantas daninhas nocivas e alta sanidade, entre outras características.

   Por outro lado, 3,6 milhões de hectares são semeados com sementes sem origem oficial, o que poderá resultar em menores produtividades, afetando negativamente a produção estadual. Números mais expressivos podem ser inferidos em nível de Brasil, que apresenta uma TUS de 67%; de seus 45,3 milhões de hectares semeados na safra 2023/24, cerca de 15 milhões de hectares foram instalados com sementes de origem desconhecida.

   Assim, o que o agricultor utiliza para “semear” esses 15 milhões de hectares? Isto é difícil de determinar. Entretanto, pode-se considerar as seguintes principais origens: 1- Uso de grão como semente; 2- Semente pirata (aquela comercializada sem licença do melhorista); 3- Semente para uso próprio.

   O uso de grão como semente é uma escolha do agricultor, apesar de todos os inconvenientes embutidos, como variedade antiga (que produz menos e é mais suscetível a doenças e pragas), purezas física e genética, germinação e vigor incertos, o que poderá resultar em menor produtividade da lavoura. Por outro lado, a semente para uso próprio envolve o registro do campo de produção de sementes junto ao MAPA; porém, isso não reconhece o árduo trabalho do melhorista.

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   Imaginem um sistema baseado principalmente em uso de semente própria: com certeza, os avanços em produtividade e atributos agronômicos seriam muito lentos, principalmente por falta de investimento e pelo não uso das inovações tecnológicas, como novas cultivares, secagem, classificação por tamanho, armazenamento a frio, tratamento de sementes e vigor.

   Em relação à semente pirata, esta causa um grande dano ao sistema, pois não reconhece o trabalho do melhorista e é produzida à margem dos processos tecnológicos adotados para a produção de sementes. Isso leva ao não reconhecimento da origem da semente, além da não realização de processos básicos para a produção de sementes de alta qualidade, como a descontaminação, colheita adequada, beneficiamento apropriado, o que resulta em matéria prima com baixos índices de germinação e de vigor, entre outros aspectos.

   Os malefícios da pirataria e não conformidades
   O principal dano da pirataria está no não reconhecimento do trabalho do melhorista, não havendo a devida remuneração aos seus trabalhos, o que apresentará redução nos investimentos nestes trabalhos, que, por sua vez, prejudicará a criação e o desenvolvimento de novas e melhores cultivares. Estima-se que entre 1 e 2% do aumento de produtividade por ano sejam devidos às novas cultivares, que são lançadas regularmente para adoção pelo agricultor.

   Outro dano é a perda de confiança em semente comercial por parte do agricultor, pois existe uma relação estreita e inversa entre qualidade de semente e pirataria. Sabe-se que sementes de alto vigor produzem mais que as de baixo vigor, podendo alcançar facilmente diferenças de 10 a 20%. Também merece registro que a semente pirata não possui pais, avós e bisavós, assim como geralmente não possui endereço.

   Sementes de plantas daninhas são comumente disseminadas com as sementes, sendo que no caso das piratas ou sem origem é alta a probabilidade de ocorrência, infestando os campos. Neste sentido, em estudo com sementes de arroz vermelho (invasora), constatou-se que possuem dormência e podem permanecer no solo por 20 anos. A presença de arroz vermelho reduz a produtividade do arroz cultivado, podendo alcançar 3% por cada planta por m².

   Em forrageiras, a contaminação com sementes de plantas daninhas é alta, sendo que, num estudo recente, constatou-se que mais de 90% dos lotes de sementes colocados à venda não possuíam o padrão mínimo de qualidade para comercialização, sendo 27% devido à contaminação com sementes de plantas daninhas. Há plantas daninhas nocivas aos animais, como o Coleostephus myconis (malmequer-do-campo), que, uma vez introduzida no campo do pecuarista, será de difícil erradicação, pois suas sementes apresentam dormência secundária e somente desencadeiam o processo de germinação caso as condições sejam tais que possibilitem a frutificação subsequente.

   Outro inconveniente de planta daninha pode ser exemplificado pela introdução do capim Kikuio da Austrália, que se alastrou no RS. Esta invasora, além de ser muito agressiva, produz muito menos alimento para os animais em relação às tradicionais forrageiras, como o azevém e outras espécies. Seu controle, ou sua erradicação, é uma árdua tarefa.
Doenças também são transmitidas por sementes sem origem oficial, requerendo um estrito controle de gerações no processo de produção, o que ocorre normalmente com a semente certificada. Vários exemplos podem ser utilizados para ilustração, como a bruzone (Pyricularia grisea ou Magnaporthe grisea) e a mancha alvo (Drechslera tritici repentis) em sementes de trigo, viroses em geral, nematoides e o cancro da haste (Diaporthe phaseolorum f.sp. meridionalis) em soja e murchadeira (Pseudomonas solanacearam) em batata.

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   A semente não é insumo. É matéria-prima! Ou seja, é essencial para a implantação de um cultivo, cada uma com seu potencial produtivo. O sucesso da lavoura começa com o uso de semente de alta qualidade de uma cultivar superior. Sementes de baixa qualidade podem causar danos ao ambiente, aos animais e principalmente ao agricultor com uma baixa produtividade ou, inclusive, frustração de safra.

   O ideal é que o produtor rural tenha em mente, ao instalar a sua lavoura que é estabelecida com sementes, os cinco pilares de qualidade: qualidade fisiológica, que são sementes com elevados índices de germinação e de vigor; qualidade sanitária, que são livres de patógenos transmitidos por sementes e de sementes de plantas daninhas; qualidade genética, compostas por sementes geneticamente puras e livres de misturas com sementes de outras cultivares; qualidade física, que engloba sementes puras, livres de material inerte e de contaminantes; e qualidade legal, que refere-se às sementes produzidas legalmente, seguindo as normas de produção de sementes conforme a legislação brasileira.

   Vale a pena lembrar que o produtor que adquire sementes piratas, além de não possuir garantias legais sobre o produto, está cometendo também um ato ilícito.

   O programa de produção de sementes melhoradas possui vários atores, sendo o produtor de sementes e o melhorista os mais regulamentados, incidindo sobre eles normas, padrões, leis e penalidades. Neste sentido, considerando que geram matéria-prima para os cultivos dentro de um ambiente de forte concorrência, em que nem todos obtém sucesso, talvez devêssemos considerá-los como “heróis”. Por outro lado, há componentes, como os “piratas”, que também atuam no sistema de sementes, podendo causar sérios danos a todo o agronegócio nacional. 

   O sistema brasileiro de sementes evoluiu bastante, contribuindo substancialmente para o sucesso do agronegócio brasileiro. Entretanto, o uso de semente não comercial, que prejudica todo o sistema montado há mais de meio século, com certeza não promove o uso de sementes de alta qualidade das cultivares melhoradas. Talvez um ajuste mais drástico para minimizar a atuação dos “piratas” e do uso de sementes não conformes, que tantos danos podem causar ao agricultor e ao ambiente, devesse ser considerado pelo sistema brasileiro de sementes. Correções de rumo são essenciais em qualquer situação.

   * Fizeram parte do PLANASEM



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