Os tempos mudam, mas o tempo continua o mesmo

Edição XXII | 01 - Jan . 2018

    Na roça onde nasci, além de trabalhar nas atividades diárias, não havia muitos compromissos agendados. Meus pais mantinham alguns que eram rotineiros: sexta-feira à tarde era o dia de ir para o comércio, fazerem os seus negócios na cooperativa da vila ou na cidade, no banco ou no sindicato; sábado ou domingo à tarde, eventualmente algum vizinho ou amigo nos visitava ou era visitado.

    Também, aos domingos, meu pai jogava bocha na comunidade e tomava aquela cerveja gelada, enquanto minha mãe visitava alguma amiga. Fora isso, uma vez por mês ela tinha reunião no grupo de senhoras da igreja e, no último domingo de cada mês, se reuniam no clube de bolãozinho feminino. Em qualquer um desses dias, todos voltavam para casa à tardinha a tempo de tirar leite das vacas. Essa era a agenda “atribulada” dos meus pais. E viviam bem assim.


O crédito diário é o mesmo para cada um

    Hoje tudo mudou e praticamente perdemos o controle sobre nosso tempo. A vida é acelerada para todos, inclusive aos que continuam vivendo na roça. A impressão é que estamos sempre atrasados com nossas atividades, nossos compromissos e em relação às mudanças. Nessa seara vivemos ansiosos e metidos em encrencas de horários, agendas e prazos.

    Interessante é que todos nós ganhamos, diariamente, um crédito de 24 horas para gastar como quisermos ou necessitarmos. Mas poucos são capazes de chegar ao final do dia com algum tempo sobrando. Aliás, a moeda do nosso século é exatamente o tempo ou como o gastamos. 

    Diz-se que o ser humano muda por três razões básicas: idade, necessidade ou vontade. A propósito disso, pela combinação de algumas dessas razões, eu melhorei a composição da minha agenda e de como gasto as minhas 24 horas, dado que certo dia quase fui do plano terreno para o plano espiritual prematuramente, em função de uma inconsequente ultrapassagem de carro, motivada por um compromisso profissional que constava “inadiável” na minha agenda.


Escapei ileso, mas nunca mais fui o mesmo

    Despois de escapar dele ileso, por um desses milagres inexplicáveis da existência, mudei minha maneira de controlar as atividades e arrumei espaços mais generosos para as obrigações, e entre elas, sejam do trabalho ou lazer. Mas, vale destacar que a pressão é grande, contínua e vem de todos os lados. Se não formos vigilantes, facilmente retornamos ao estado anterior.

    Tenho notado que a maioria de nós anda assim – na pressão –, sem espaço para visitar os amigos com tempo, os clientes, fazer relações mais genuínas, trocar ideias ou simplesmente levar e trazer insights. Exatamente o que nos torna mais inovadores, capazes de discernir sobre o benchmark e a competitividade. Em suma, mais humanos e felizes.

    Aliás, quando nos alongamos numa conversa prazerosa, num bate-papo, numa visita na hora do trabalho, sentimo-nos até mesmo culpados por gastarmos nosso precioso tempo sem a devida utilidade prática.

    Há a autocobrança, mesmo que subliminar, de que estamos matando tempo, quando na verdade estamos exercitando um dos grandes diferenciais do sermos humanos: a capacidade de comunicação, na amplitude do seu significado.

    Com a estúpida pressão diária da agenda, deixamos de aproveitar esse grande diferencial do ser humano que é exatamente o da linguagem. De poder se expressar com maestria, em detalhes, manifestando sentimentos e a visão das coisas para com os outros.

    Mas não. Adotamos a prática de sermos breves, objetivos e focados. Não temos mais tempo de ouvir os outros, e estes não se sentem à vontade em expressar suas opiniões em detalhes, nem seus sentimentos, porque têm a nítida impressão de que estão atrapalhando. E do modo como tocamos nossa vida, estão mesmo!


A ojeriza aos prolixos e à profundidade

    Temos ojeriza dos prolixos, daqueles que precisam mais do que três minutos para dizer o que querem e pensam. Como se isso sempre fosse possível. Não queremos ler nada que necessite mais do que 30 segundos. Sim, 30 segundos para ser compreendido. Se for um desenho capaz de explicar o suficiente, é melhor ainda.

    Estudar um assunto em profundidade é coisa do passado. Está fora de moda. Estamos na era da informação, do conhecimento fluído e disponível. Mal sabemos, como ignorantes e estúpidos que nos tornamos, que nossas opiniões, nossos relacionamentos e sentimentos estão cada vez mais rasos e superficiais.

    Ninguém mais se interessa em ir a fundo nos assuntos, debater e saber opiniões contrárias (pontos de vista alternativos e dissonantes), saber de verdade, discutir o core dos temas. Todos compram as ideias e as coisas pelo invólucro. Ninguém busca, exaustivamente, saber o que há lá dentro, no âmago das questões. Porque isso dá trabalho e gasta-se tempo que ninguém quer perder.

    Mal lemos as manchetes das redes sociais, mas enchemos o peito, arrotando opiniões como se tivéssemos lido e debatido o conteúdo de várias enciclopédias. Representamos cada vez mais uma sociedade “maria vai com as outras” (com perdão às Marias, que não tem nada a ver com isso), comandados pelas mídias e por quem sabe e tem cacife para utilizar-se delas. 

    Perdemos a vergonha e não nos importamos mais de sermos ridículos, emitindo opiniões sem base, principalmente nas redes sociais, sem tempo ou interesse em ler e estudar.

    Com a agenda apertada, esquecemos dos amigos e não ligamos mais para eles. Fazer uma visita no final de tarde é quase uma afronta ou, no mínimo, um atrapalho, um estorvo. Mesmo com agenda, vão querer saber o assunto a ser tratado.

    Assim, mutuamente influenciamos toda uma sociedade que tenta se adaptar e se reconstruir baseada nas agendas apertadas, quase com sofreguidão. Mas as cobranças são inevitáveis e vêm em forma de patologias, que não são poucas, e nem mesmo irrelevantes. No médio prazo, todos nós sentiremos os reflexos, direta ou indiretamente, desse modelo nefasto de existência que escolhemos.

    Quem sabe, nesse início de ano, você repense a sua prática e comece a fazer diferente. Pense e aja com mais inteligência e lógica. Como diz aquele ditado: acelerar só é a melhor escolha quando se está na direção certa.



Até a próxima.

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