O Brasil editou três leis dispondo sobre o setor de sementes e mudas, sendo que a primeira, de 1965, tratou apenas da fiscalização do comércio; a segunda, de 1977, da inspeção e fiscalização da produção e do comércio; e a terceira, de 2003, em vigor, da fiscalização da produção, do comércio e da utilização. Ademais, esta última, ao lado de fiscalizar, trouxe para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a competência de orientar a utilização de sementes e mudas no país, com o objetivo de evitar seu uso indevido e prejuízos à agricultura nacional.
No que compete à utilização de sementes e mudas, a materialização dessa medida está expressa no texto do art. 114 do regulamento da lei: “Toda pessoa física ou jurídica que utilize semente ou muda, com a finalidade de semeadura ou plantio, deverá adquiri-las de produtor ou comerciante inscrito no RENASEM, ressalvados os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas, (...)”.
No entanto, nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo, o Poder Executivo, em cumprimento ao disposto no inciso XLIII, do art. 2º da Lei, decidiu por ressalvar os demais agricultores da obrigatoriedade de adquirir semente ou muda de produtor ou comerciante inscrito no RENASEM, para a semeadura ou plantio das suas áreas, ao permitir aos mesmos a possibilidade de reservar parte de sua produção como “semente para uso próprio” ou “muda para uso próprio”, bastando, para tanto, tão apenas que comprovem (quando solicitados) que, em algum momento no passado adquiriram, de produtor ou comerciante inscrito no RENASEM, um volume mínimo de qualquer categoria de semente ou muda.
Assim, inconteste é o fato de que não apenas os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas estão desobrigados de adquirirem sementes ditas comerciais. De uma forma geral, os agricultores também gozam desse mesmo privilégio.
Para melhor compreensão do tema em questão, a tabela no texto traz um breve comparativo sobre como as legislações categorizaram os diversos tipos de semente.
Logo, a exemplo do que ocorreu com as atividades fins, as categorias de sementes também foram progressivamente se ampliando a cada edição de uma nova lei. Na primeira esgotava-se na semente certificada, na segunda foi adicionada a categoria fiscalizada, e na última substituiu-se a categoria fiscalizada pela não-certificada e, subjetivamente, incluiu-se a “semente para uso próprio”. Ou seja, em termos de categorias de sementes, as duas últimas legislações, excetuada a exclusão da categoria Registrada e as mudanças de terminologias (semente fiscalizada vs. semente não-certificada), pouco diferem entre si.
Fato marcante na conformação legal atual, no entanto, foi a inclusão da figura da “semente para uso próprio”. Isso, sem uma clara definição se esta se constituía, ou não, numa outra (nova) categoria de semente, subsequente à semente não-certificada de segunda geração (semente S2).
Ora, se ao produtor de sementes legalmente estabelecido não é permitido fazer uma semente C2 a partir de outra C2, por exemplo, como entender que ao agricultor seja dada ampla liberdade para fazer uma “semente salva” a partir de outra “semente salva”, de outra “semente salva” e, assim, infinitamente?
Essa omissão coloca empresas de pesquisa e produtores de sementes em posição antagônica a dos agricultores em geral, que entendem – e, para isso, contam com a complacência do MAPA – que a Lei lhes faculta o direito de salvar “sementes para uso próprio” em volumes superiores aos das sementes adquiridas e por safras sucessivas, sem a devida autorização do titular dos direitos de proteção sobre a respectiva cultivar protegida. Ou seja, são livres para multiplicar sementes safra após safra sem limites de gerações, em contraste ao exigido para as demais categorias de sementes.
Ora, se ao produtor de sementes legalmente estabelecido não é permitido fazer uma semente C2 a partir de outra C2, por exemplo, como entender que ao agricultor seja dada ampla liberdade para fazer uma “semente salva” a partir de outra “semente salva”, de outra “semente salva” e, assim, infinitamente?
Na verdade, o MAPA pouco se esforçou para, por ato normativo próprio, limitar na “semente para uso próprio”, o número de gerações e os volumes que poderiam ser produzidos a partir da semente comercial adquirida. A Instrução Normativa nº 9, de 2/6/2005, é inequívoco exemplo dessa afirmativa, já que pouco acrescenta ao Capítulo IX do regulamento da Lei, no que respeita a uma normatização mais efetiva da “semente para uso próprio”. Basta uma rápida visita aos incisos III e IV do art. 115 do regulamento da Lei para constatar tais assertivas, vejamos:
O inciso III reza que a “semente para uso próprio” deve ser proveniente de área inscrita no MAPA, quando se tratar de cultivar protegida. No entanto, a IN nº 9, de 2005 – um ato normativo hierarquicamente inferior –, em seus Subitens 7.3, 7.4 e 7.5 substitui a obrigatoriedade da inscrição por uma mera declaração de inscrição de área, numa atitude questionável do ponto de vista legal, já que um ato normativo superior não pode, sob qualquer hipótese, ser alterado por outro hierarquicamente inferior.
Já o inciso IV, dispõe que a “semente para uso próprio”, quando se tratar de cultivar de domínio público, deve obedecer ao disposto no regulamento e em normas complementares. Ora, obedecer ao quê, se nem o regulamento nem a IN nº 9, de 2005, passados 14 anos, NADA dispuseram sobre o tema, que permanece num limbo absoluto até os dias atuais.
No caso da semente comercial, a Lei é clara sobre o número de gerações de cada categoria passíveis de serem obtidas, qual seja:
● certificada C2, certificada C1 e básica, no máximo, uma geração a partir da categoria imediatamente anterior.
● não-certificada, no máximo, duas gerações a partir da certificada C1, certificada C2, básica ou genética.
Quanto a isso, não pairam dúvidas e é assim que o sistema de produção de sementes funciona no Brasil e, também, em diversos países da América Latina.
Se o legislador, a exemplo do que ocorreu com as demais categorias de sementes conceituadas no art. 2º da Lei, não remeteu a “semente para uso próprio” para o Capítulo V – Da Produção e da Certificação, é porque entendeu que, diferentemente das demais categorias, o conceito contido no inciso XLIII do art. 2º é simplesmente AUTOAPLICÁVEL.
Melhor explicando: Como a “semente para uso próprio” não foi objeto de tratamento idêntico ao da semente comercial, a exemplo do estabelecido para a semente não-certificada – ver o art. 24 e seu parágrafo único da Lei – entende-se que, não à toa, ao conceituar “semente para uso próprio”, o legislador sabiamente estabeleceu que a guarda do material de reprodução vegetal se dará a cada safra para semeadura ou plantio EXCLUSIVAMENTE na safra seguinte.
Se substituirmos o termo EXCLUSIVAMENTE por alguns sinônimos, de forma a melhor compreender a verdadeira intenção do legislador, temos:
- a guarda do material de reprodução vegetal se dará a cada safra para semeadura ou plantio UNICAMENTE na safra seguinte, ou
- a guarda do material de reprodução vegetal se dará a cada safra para semeadura ou plantio APENAS na safra seguinte.
Para o bom entendedor, a presença do termo “exclusivamente” tem, sem quaisquer sombras de dúvidas, o objetivo de servir de limitador do número de gerações a que a “semente para uso próprio” está sujeita. Ou seja, exclusivamente na safra seguinte significa que ao agricultor estará permitida, no máximo, uma geração a partir da multiplicação de qualquer categoria de semente adquirida de produtor ou comerciante inscrito no RENASEM, nos termos do art. 114 do regulamento da Lei.
As entidades de classe dos sementeiros ensaiam certa movimentação com vistas à elaboração de uma nova lei de sementes, em substituição ao ordenamento legal vigente. Enquanto isso não se concretiza, já seria um grande paliativo se o MAPA desse seguimento à proposta de revisão do regulamento da Lei nº 10.711, de 2003, que, há mais de seis anos, vem sendo objeto de exaustivos debates, com a efetiva participação do setor público e privado, direta e indiretamente envolvido com a produção, o comércio e a utilização de sementes e mudas no país.
Acredita-se que, sanadas as impropriedades que circundam a “semente para uso próprio”, o equilíbrio entre a pesquisa, o produtor de sementes e o agricultor seria prontamente restabelecido, o que pode ser implementado, em um curtíssimo prazo, mediante a revisão do regulamento da Lei nº 10.711, de 2003, aprovado pelo Decreto nº 5.153, de 2004. Ou seja, por ato exclusivo do Poder Executivo.