Democracia, tabelamentos e subserviência

Edição XXII | 04 - Jul . 2018

    Estamos entrando (ou tentando retomar) num círculo perigoso. O de terceirizar a nossa vida e os nossos negócios ao Estado, através dos tabelamentos, controles e fiscalizações no mercado. Primeiro foram os caminhoneiros, depois o agronegócio e a fila que é longa, não para. A grita é sempre grande, com cada grupo ou setor puxando a brasa para o seu assado. Seguindo nessa linha, de antemão sabemos qual o destino da estrada, pois já estivemos nela noutro momento da nossa recente história.

    A própria constituição, jovem como a democracia que experimentamos, guarda artigos generosos e evidentes de que ainda estamos longe de praticar o livre arbítrio, típico da maior parte dos países desenvolvidos. Requeremos os benefícios e a proteção do Estado para tudo, mas não temos muita simpatia por anotar e exercer nossas responsabilidades como parte desse grande condomínio em que vivemos, chamado país.


    Os assuntos são indigestos 

    As trapalhadas do governo atual em relação à recente greve dos caminhoneiros apenas deram mostras mais contundentes do quanto estamos à deriva em termos de gestão, e principalmente nos quesitos liderança, princípios e propostas. Aliás, já faz algum tempo que esses assuntos são indigestos para o país, seja o governo de matiz mais à esquerda ou à direita.

    Os desdobramentos decorrentes suscitaram muitas certezas. Infelizmente, nenhuma me cheira bem, já que até o momento apenas alguns ganharam um pouco no curto prazo e todos perderão algo no médio e longo prazos. A sociedade subserviente aceitou novamente retirar de alguns para dar a outros, assumindo para si as mazelas do desabastecimento ocasionado pelo legítimo, mas desorganizado, enfrentamento do setor de transportes. 

    Ficou evidente que o Governo e o Congresso são muito ruins em vários e diferentes aspectos (provavelmente um dos piores que já tivemos na recente história democrática desse país). Nessa seara, foram lentos e incapazes de apresentar quaisquer propostas consistentes para avançarmos. Apenas tentam abafar os incêndios sempre que surgem. Também não demonstram qualquer interesse genuíno de que seja diferente. Pelo contrário, no corporativismo, todos se protegem.


    Nosso comportamento é bovino 

    Armam o circo e, no picadeiro, a cada período eleitoral, manifestam suas pretensas lutas e projetos enquanto os fantoches aplaudem a uns e outros, baseado em simpatias que não se sustentam ao menor crivo lógico ou histórico. Percebe-se, há muito tempo, que estão preocupados principal e soberbamente em manter o seu status quo, não dando a mínima para as demandas advindas da sociedade, a qual tratam com desdém, distância protocolar e como seres inferiores.

    Isso vale para aqueles que se consideram de esquerda, de centro e da direita. Hoje, nenhuma das correntes políticas é minimamente defensável por aquilo que tem conseguido apresentar, por mais bem-intencionado que o interlocutor seja. Esse tratamento, obviamente, também é reflexo do comportamento bovino e da falta de engajamento social que nós temos revelado como povo. 

    Os poderes executivo e legislativo (o judiciário caminha na mesma linha) somente reconhecem qualquer setor produtivo ou de relevância (como foi o de transporte, nesse caso) no momento em que essa massa é capaz de fazer estrago indiscutível. Foi necessário parar o país para que finalmente tirassem a bunda da cadeira. Ainda assim, de modo sonolento e claudicante.

    Qualquer manifestação inequívoca da população sempre traz frutos. Essa também trará. Nem que seja apenas para despertar os inertes. Mas me parece que a ignorância permanecerá no nível que sempre esteve. Não se iludam que algo de extraordinário vá acontecer. Muito menos nas eleições. Nada de especialmente novo está surgindo no horizonte.


    A espera de um ente superior 

    Ainda estamos no estágio onde a população acredita que alguém ou algum ente seja capaz de colocar tudo nos trilhos, sem dor ou sacrifício. Basta ver que uma das principais bandeiras, principalmente no ocaso do movimento, foi exatamente a da intervenção militar, com a qual temos flertado perigosamente aqui e acolá. De modo juvenil e com algum romantismo, há esperanças em soluções dessa natureza. É bom lembrar que apenas a democracia permite essas ilações e espasmos sem que a liberdade seja cerceada.

    Queremos emagrecer, mas não estamos dispostos a fazer dieta e muito menos intensificar os exercícios. Imaginamos que trocando de médico, tornaremo-nos ágeis e produtivos. Assim, mexer efetivamente na estrutura paquidérmica do Estado, nas regalias e nas reformas estruturais que se fazem necessárias para efetivamente colocar o Brasil em desenvolvimento contínuo não são temas de qualquer uma das correntes que buscam ou estão no poder. 

    O esforço, em todos os sentidos, é para a manutenção do modus operandi; contudo, não é uma luta deles contra nós. O governo e nossos representantes, por obviedade, apenas representam a sociedade. Basta considerar que a greve recente, por consequência, revelou também, de modo contundente, que estamos num país de muitos aproveitadores. Enquanto em países civilizados, em casos de emergência social, os empresários chegam a vender seus produtos ou serviços a preço de custo, aqui revelaram-se aproveitadores e oportunistas majorando seus preços em 400% ou 500%.


    Melhoramos, mas não é o suficiente

    Avançamos significativamente em termos de transparência, e a legislação encrudesceu sobre os entes públicos, mas a renovação no andar de cima está longe de efetivamente ocorrer. Devemos reconhecer que não temos lideranças, em qualquer nível que seja, com patrimônio político e moral suficientes para capitanear as demandas requeridas da nossa seletiva sociedade. Em boa medida, pode explicar as manifestações recorrentes nos últimos anos, mas que não conseguem efetivamente interferir na maneira de fazer política. 

    Os ditos líderes que se mantêm lépidos (nem tão faceiros porque a justiça está no encalço da maioria) e disponíveis para os próximos pleitos não trazem nada de diferente ou extraordinário e, ao que que tudo indica, estão ultrapassados já há algum tempo. Não há nada de novo no sistema que nos permita sonhar ou esperar grandes avanços estadistas capazes de colocar (ou recolocar, para os mais otimistas) o país em desenvolvimento seguro. 

    Pelo contrário, o que se percebe nos movimentos dos pretensos postulantes é mais do mesmo, já que os assuntos cruciais e fundamentais para a nação são discutidos cada dia mais, com base em posts de redes sociais e vídeos de improviso realizados no calor da luta diária e recebidos com o famoso jargão: “disse tudo”. Nenhum movimento está realmente organizado. Organizam-se como uma manada. O resultado já é de se esperar.

    O caminho é longo, as ferramentas estão disponíveis, a esperança persiste e a energia não se esgota.

    Até a próxima. 

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