Produção de Sementes de Alta Qualidade

Edição V | 04 - Jul . 2001
Antonio Carlos Souza de Albuquerque Barros-acbarros@ufpel.edu.br

    Quando se quer dizer alguma coisa, o mais fácil é perguntar – fato esse que gera uma grande expectativa quanto à resposta ao assunto que se vai encadear, discorrer ou polemizar. Em nosso caso, a pergunta a ser feita seria se há dificuldade em se produzir sementes. Em verdade, produzir é relativamente fácil, desde que se adotem as técnicas e condições disponíveis para o processo. Afinal, na prática, sabe-se a época de semeadura, a variedade; dá-se andamento aos processos de preparação de solo, semeadura e manejo daquela espécie; espera-se uma boa condição para que atinja a época de floração e, portanto, logo em seguida, virá a colheita. Perfeito. Entretanto, tudo isso aplica-se à produção de grãos.

     Pode-se ainda afirmar: produzir sementes, alguns produzem, mas as de alta qualidade requerem conhecimento e tecnologia. Como nosso tema e especialidade são as sementes, passaremos a levantar aspectos que são indispensáveis para a produção de sementes de alta qualidade. 

    Inicia-se a produção quando se tem certeza de que aquele local, aquela região, são apropriados para esse objetivo. Afirmava-se, há algum tempo atrás, que algumas regiões de nosso país eram inaptas até mesmo para grãos; imagine-se então para sementes. Hoje vemos as diversas localidades de clima ameno, no Centro Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, produzindo sementes de soja, milho, algodão, e já reconhecidas como regiões habilitadas, apropriadas para a geração de sementes de qualidade. A região Sul, mais especificamente o Rio Grande do Sul, historicamente, produz sementes de alta qualidade, principalmente de soja, pois é favorecida com temperaturas mais amenas que outras regiões na época de formação da semente. É claro que a semente de qualidade só é produzida e comercializada por gente qualificada e, por isso, atualmente alguns produtores, para se livrarem das más companhias, obtiveram seu certificado de qualidade ISO 9002.

    Muito embora determinadas espécies sejam talhadas para algumas regiões, observa-se que o produtor, no afã de obter maior uso de sua área e maior lucratividade, introduz novas espécies naquela área. Cria-se, então, um novo ciclo, uma nova etapa e, por conseguinte, uma nova perspectiva e, com isso, uma nova necessidade – a semente. E onde há tecnologia e progresso, há mais exigência de qualidade. Vide situações do Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Pará, Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia, que se caracterizam por apresentarem novas e imensas áreas de produção, alta tecnologia e aprimoramento técnico, para obtenção de altos rendimentos. E o veículo carreador desse progresso, sem dúvida, é a semente. De alta qualidade? Acredita-se que sim. 

    Aqui, outro ponto delicadíssimo tem de ser mencionado. Veja-se que na produção de sementes de alta qualidade um fato a questionar é o tipo de semente que vai ser usada. Qual variedade é a indicada para aquele local, pois se supõe que essa foi testada e avaliada pela pesquisa. O produtor deverá oferecer uma cultivar de preferência do consumidor/comprador e que tenha mercado, que proporcione retorno ao consumidor, possivelmente, por suas características e importância industrial. Para o produtor de sementes, o resultado positivo é uma afirmação e um retorno pela comercialização daquela espécie e cultivar – de algodão, por exemplo, pois ele previu que aquela seria a preferida, pois atende aos interesses da indústria, por suas características de fibra, resistência a insetos, etc. De outra forma, para o consumidor, representa a expectativa de uma variedade que lhe garanta o retorno de seu investimento, por todas as características preconizadas pela pesquisa e em muito, sim, por seu vizinho, que no ano anterior colheu muito bem com aquela espécie e variedade. 

    A classe de sementes a ser produzida também é extremamente vital. Atualmente, ainda se produz no Brasil a semente da classe fiscalizada. Entretanto, brevemente, o país adotará unicamente o programa de Certificação, onde há quatro classes de sementes: Genética, Básica, Registrada e Certificada. Dessas quatro, o produtor de sementes tem acesso à Básica e, a partir dessa, terá que, obrigatoriamente, produzir sementes da classe Registrada e/ou Certificada. Esse é um programa de produção utilizado em diversos países e, por si só, garante a credibilidade, origem e a qualidade das sementes. O processo começa com o material genético proveniente de um programa de melhoramento que, através dos mecanismos utilizados na genética, produz uma nova variedade. Exige controle de gerações, pois cada classe de sementes tem um limite de multiplicações. 

    Tomando como exemplo uma variedade de soja, essa só poderia ser produzida por uma vez, caso fosse da classe certificada, se assim fosse determinado pela entidade certificadora. Essa exigência garantiria a diminuição da possibilidade de contaminação genética, o controle de gerações e a manutenção de sua identidade. Assim, o controle da produção é feito por uma entidade certificadora, que se mantém fora da ingerência do produtor e é responsável l por todos os processos do sistema de certificação, ou seja: registro de produtor, credenciamento para a produção no ano agrícola, inspeção de campos de produção de cada produtor credenciado, coleta de amostras de sementes e análise em laboratórios oficiais ou credenciados, e emissão dos Certificados de Garantia de Sementes. Além disso, exige que o produtor mantenha uma série de controles da produção, desde as fases de campo até o beneficiamento e a comercialização, o que permite um gerenciamento total dos números da produção.  Esse é o papel do programa de certificação: organizar, controlar, verificar, analisar e, por fim, certificar. Se a semente tem seu certificado é porque merece. Tem a certidão, assim como cada indivíduo ao nascer recebe a sua, que lhe garante o direito de cidadania. Quando se vai comprar qualquer produto de uso pessoal, deseja-se saber quem produziu, qual o local, a época, prazo de validade. Mas se esse tem um nome conhecido, são dispensadas as informações citadas anteriormente. Exatamente aí, nesse caso, encaixa-se o programa de certificação.

    Atualmente não se sabe qual o verdadeiro controle da produção da semente fiscalizada, pois não há um controle externo efetivo, com vistorias da área de produção, análise das amostras dos lotes endereçados ao comércio, fiscalização do comércio e assim por diante, ficando apenas e exclusivamente sob o controle da empresa produtora e do engenheiro agrônomo Responsável Técnico (RT). Esse tipo de semente serviu como impulso ao programa brasileiro de sementes, que começou a dar seus passos iniciais na metade da década de 1960, sustentando a agricultura brasileira até hoje. A comunidade sementeira do país acredita que o setor esteja preparado para evoluir a um sistema de produção de sementes reconhecido internacionalmente e, aos agricultores que desejarem comprar outro tipo de sementes, haverá uma classe ainda a ser definida, entretanto, praticamente, sem controle externo.

    Isso não significa que todo consumidor terá disponível somente a semente certificada, pois se sabe que “sementes comuns” ou “sementes de espécies identificadas” ou sementes “correntes”, como são denominadas em países de língua espanhola, sempre estarão em oferta. Isto é claro e visível, pois há consumidores que sempre irão comprar a “semente” mais barata. Esses não se importam com o tipo de semente ou com o “produto” que colocam em seu solo ou em sua área de produção. Sempre é possível ter um produto mais barato, desde que seja possível também baixar sua qualidade.

    Observe-se o caso da cultura de arroz, que há muitos anos vem se notabilizando por apresentar problemas com sementes de arroz daninho, o arroz vermelho. Sem entrar no mérito da situação, de como foi introduzido, e do descaso inicial que se deu a esse tipo de arroz, hoje existem quadros de lavoura, como chama o produtor da zona sul do Rio Grande do Sul, em que o rendimento da produção diminui em 50% ou mais, quando o arroz vermelho se faz presente. O arroz produz, normalmente, 5.500 kg/ha (110 sacos) no RS, sendo que menor rendimento é antieconômico, em determinadas áreas do estado. Em quadros em que há presença de arroz vermelho, a produção chega muitas vezes a diminuir para 2.800 kg/ha. Essa perda, em determinadas áreas, chega a 80%. Produtores de outras regiões, não habituados ao cultivo, não imaginam esse fato, pois não vivenciam esses problemas. A razão dessa calamidade no cultivo do arroz sabe-se qual foi. Exatamente isso que o leitor deve estar pensando: uso indiscriminado de sementes não identificadas ou de baixa qualidade. A compra, pelo agricultor, de produtos ilegalmente comercializados, na busca da “semente” mais barata, foi uma das causas dessa devastadora presença na lavoura local e nacional. Imagine um custo de implantação de R$ 1.000,00 por hectare e o valor do saco de arroz a R$ 14,00. Se o produtor não diminuir seu custo e ainda tiver outro “concorrente extra” o arroz vermelho - que lucro poderá ter? Nenhum. As citações e situações anteriormente apresentadas são verídicas, de um produtor de sementes da região sul do RS, em que sua produção nessas áreas atingiu média de colheita, com o produto seco e limpo, de 4,2t/ha, ao passo que em áreas com controle de vermelho, esta chegou a 7,0t/ha. 

    Imagine-se comprando sementes sem origem e com esse tipo de problema em soja, com a presença de sementes proibidas, nocivas ou toleradas. Se não houvesse um controle rígido quanto à presença de sementes de feijão miúdo ( Vigna unguiculata, L), Cardiosperma sp . (saco de padre), Euphorbia sp . (leiteiro) e outras, como seria a infestação de sua lavoura no ano seguinte? Não se imagina porque não se tem esse problema, ou se existe, é minimizado pelo controle de daninhas, no campo, no cultivo da soja. 

    Os controles desses problemas concorrem para o sucesso da produção de sementes de alta qualidade. Quando se produzem sementes, alguma outra norma tem que ser seguida. Veja-se o exemplo da distância entre uma lavoura e outra, que chamamos de isolamento. A soja, diríamos, não tem problema, pois é uma espécie que se autofecunda, não apresentando cruzamentos entre si. O mesmo acontece com o arroz. Mas em verdade, sabe-se que, embora sejam ambas de autofecundação, ainda assim, cruzam-se dentro de cada variedade da mesma espécie. 

    As plantas se cruzam, mesmo aquelas autofecundas, apenas variando em percentagem. Assim, em arroz, pode chegar a 3-4%, razão pela qual há tantos tipos de arroz vermelho, uns mais prejudiciais que outros. Por outro lado, em algodão, esse percentual pode alcançar 10%, requerendo do produtor de sementes cuidados especiais de isolamento, depuração ou rouguing e aquisição de sementes básicas. Em algodão, em especial, a necessidade de pureza varietal para fibras de alta qualidade é essencial, pois no momento de tingir a fibra, havendo misturas varietais, o processo não se mostra eficiente. O comércio internacional está se tornando exigente quanto às fibras de algodão, requerendo alta qualidade com alta pureza varietal. 

    Os cruzamentos naturais mais as misturas varietais que ocorrem durante os processos de colheita, transporte, secagem e beneficiamento são os grandes responsáveis pelos desvios genéticos das variedades, fazendo com que as mesmas percam no decorrer dos anos os atributos benéficos, como potencial de produtividade, resistência a doenças e pragas e utilidade industrial. A produção de sementes de alta qualidade requer um profissionalismo tal, que se diferencia de forma acentuada da produção de grãos.

    Retome-se o caso da mistura mecânica e da exigência de isolamento de áreas e cuidados de limpeza de máquinas ao se trocar de variedade, por exemplo, na semeadura ou colheita. Se tomarmos uma única semente, que veio de uma mistura mecânica e essa gerar uma nova planta de soja, teremos, no mínimo, 100 novas sementes e essas 100 x 100 e essas x 100, que vieram daquela única semente que contaminou a nova cultivar recém lançada, mas que, por descuido, misturou-se com outra semente de outra cultivar, gerando essa perda de identidade genética. Se imaginarmos que essa situação foi verificada no campo, com a soja, e que em um hectare tem-se 250 mil plantas, que desastre poderia ocorrer se essa mistura se verificasse em maior escala! Uma nova cultivar logo seria perdida pela contaminação e perda de suas características genéticas obtidas através de um longo e oneroso período de melhoramento da espécie para a obtenção de uma nova variedade. A situação gerada aí seria, provavelmente, diferença de maturação, sementes com hilo de cor diferente, caracterizando mistura varietal e, com isso, prejuízos ao comprador e danos irreparáveis ao produtor de sementes, pois a qualidade da semente teria sido perdida e a moral daquele, abalada. 

    Muitas vezes, algum produtor inescrupuloso não leva em conta o dano, porque essa soja será misturada com outra de mesma variedade e o efeito da contaminação física ou genética estará diluído no lote. Isso não é verdade. Esse material (semente) em seguida perderá sua integridade, perderá sua pureza, e a sua degeneração levará à perda de credibilidade daquela cultivar, que prometia ser de alto rendimento, resistente a pragas e moléstias e de grande retorno econômico. Se o objetivo é comprar uma garrafa de whisky importado, não se quer o produto adulterado ou misturado. Paga-se para obter o verdadeiro produto. Assim tem que ser com a semente.

    Entretanto, o produtor poderá ter ainda sua chance, dependendo da época de desenvolvimento em que a cultura estiver, no que diz respeito à realização do processo de depuração (rouguing). Se esse processo de descontaminação de suas áreas for realizado, sua lavoura poderá, então, passar pela inspeção oficial do campo para verificar se essa área “para sementes” está ou não dentro dos padrões estabelecidos para sua aceitação como tal, por exemplo, da classe certificada, da espécie arroz. 

    Vencida mais uma etapa do controle interno e externo de qualidade, se a área estiver dentro dos padrões, logo estará apta para a colheita. Sendo assim, inicia-se uma nova etapa do processo de produção de sementes de alta qualidade, que é a colheita. Essa será a consumação de todos os esforços e da dedicação ao processo, e terá que ser realizada agora e não depois. A qualidade começa com o conhecimento da maturidade fisiológica de cada espécie. Umidade da semente, maturidade fisiológica e colheita são termos indissociáveis, principalmente para a produção de sementes de alta qualidade, assunto que se aborda neste momento. 

    Não se pode esquecer o manejo da cultura, ligado à época de semeadura e subseqüente colheita, e muitos outros aspectos. Mas, nessa época, o produtor  começa a olhar para “os céus”, algumas vezes esperando um milagre para que sua safra não seja perdida por atraso na colheita, chuvas na maturação. Ou então, por hábito, tradição ou teimosia, espera a maturação de campo, quando as sementes chegam a umidades próximas de 13%. A intenção é muito boa, mas há um lugar que está cheio de gente com boas intenções! Essas pessoas com certeza não foram para frente. É o mesmo caso das sementes, pois se não forem colhidas antes dessa época, com umidade mais alta, com absoluta certeza serão sementes de baixo vigor. Se as sementes ficarem “armazenadas” no campo estarão sujeitas a todo tipo de intempéries, e é sabido que isso desgasta a semente, tornando-a de baixo vigor. 

    Imagine um organismo em situação adversa, por exemplo, sob chuva, sem nenhum resguardo, o que tenta fazer? Tenta, é evidente, proteger-se. A semente não é diferente e sua proteção é dar início ao processo de germinação, pois estará protegendo a si e a sua espécie. Ao tentar fazer isso, se desgasta, pois inicia um processo que não vai conseguir acabar. Começa germinando e pára, pois não tem água suficiente para completar os processos metabólicos. Como é possível deduzir, isso leva à perda de vigor, pois lá no campo está gastando suas reservas.  Nesse momento, o Responsável Técnico que orienta todo esse trabalho, passa também a pensar que, se houver falhas na condução dessa fase, tudo estará perdido. 

    No jogo de snooker há sempre uma bola da vez. Não se pode deixar para amanhã o processo de colheita. Então, o Responsável Técnico sabe que no primeiro momento que puder entrar com a “ceifa” na lavoura, deve ser realizado o corte, para que a secagem e armazenamento possam ser imediatamente efetivados. O lugar da semente pronta, que lhe ofereça maior probabilidade de sucesso na atividade rural. Lembre-se que a qualidade não custa, vale! É evidente que uma semente que exija alto custo para ser produzida e, em contrapartida, ofereça um alto potencial de retorno, custe mais do que um produto obtido de forma pouco convencional. 

    O que se abordou nesta viagem aos campos de produção de sementes foi a produção de sementes de alta qualidade e cremos que o tema não se esgota, ficando esse alerta para algumas situações em que os profissionais podem interferir, e lembrando-se aquilo que sempre é dito: “Semente faz-se no campo, não na UBS”.



Também colaborou com esta matéria o Prof. Silmar T. Peske, UFPel/Pelotas, peske@ufpel.tche.br.

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