O Desafio das 100 Milhões de Toneladas de Grãos

Edição VI | 05 - Set . 2002
Ivo Marcos Carraro-carraro692@gmail.com

    O avanço rápido da produção brasileira de grãos tem sido, nos últimos anos, objeto de citações orgulhosas de políticos, lideranças e jornalistas em diversas oportunidades e, de fato, é um motivo de orgulho para todos os brasileiros. Afinal, vivemos em um país de contrastes, que sempre deu maior valor ao estrangeiro, ao importado, pouco valorizando as potencialidades nativas do país. O fenômeno que vem ocorrendo com a nossa agricultura, sempre desacreditada por nossa população urbana e pela maioria dos políticos, que sempre viram na industrialização a redenção para nossa economia, está mostrando não só a sua competência e vocação, como também o imenso potencial dos recursos naturais de que dispomos.

    Ao se analisar o período de 1990 a 2002, fica evidente que enquanto a área plantada com grãos cresceu apenas 7,9%, a produção aumentou no mesmo período 74,7%. A participação do agronegócio nas exportações, responsável nos últimos anos pelo superávit na balança de pagamentos, tem sido observada e aplaudida pela maioria dos políticos e economistas.  Muitos fatores contribuíram para este espetacular avanço na produtividade, que vem colocando o Brasil em destaque no cenário internacional como um país agrícola por excelência. É evidente que há um longo caminho ainda a percorrer, e o que está acontecendo no cenário dos últimos anos é apenas um indicativo das potencialidades da atividade agropecuária em nosso país. 
    Os últimos saltos conquistados na produção de grãos não ocorreram por acaso. Ao observar-se mais detidamente o gráfico da página seguinte, percebe-se que vínhamos de um patamar de 75 milhões de toneladas, até 1998, e nos dois anos seguintes este patamar subiu para 82 a 84 milhões, e que nos dois anos seguintes nos aproximamos muito dos 100 milhões, já que a safra 2002 ainda não está definitivamente computada, havendo ainda as lavouras de inverno, cujos valores são ainda estimados. De qualquer modo, o patamar próximo aos 100 milhões de toneladas está consolidado e estabelece um ritmo de crescimento no que tange à capacidade de crescimento, seja por incremento na produtividade ou, eventualmente, por agregação de área. 
    É importante salientar que estes dois últimos saltos coincidem com o novo ambiente de proteção de cultivares, que em seu início envolveu praticamente todos os produtos geradores de grãos, e que proporcionou, sem dúvidas, maiores investimentos e profissionalização do setor sementeiro, com influência marcante sobre o crescimento da produtividade em praticamente todas as culturas. 
    As condições naturais, embora de grande diversidade, oferecem um imenso leque de oportunidades para este desenvolvimento, porém sem a concorrência dos fatores humanos isto não seria possível. Durante vários anos houve uma preparação muda e silenciosa dos agricultores de todas as categorias (pequenos, médios e grandes), da pesquisa e dos organismos de extensão nacionais oficiais e privados, das indústrias de equipamentos e insumos, e das políticas de governos federal e estaduais. 
    Iniciando pelo Sul e Sudeste, a agricultura empresarial mecanizada passou por períodos difíceis, com uma exploração inconseqüente, que não se preocupava em conservar os recursos naturais. Em seguida, esta mesmas regiões acabaram incorporando tecnologias de conservação de seus solos que foram sendo transferidas para outras regiões, e hoje o Brasil é um dos países que mais utiliza a prática do Plantio Direto, tendo praticamente dominado o terrível problema da erosão e da degradação dos solos. Em seguida, em uma caminhada de sul a norte, muitos agricultores povoaram as imensas áreas do Centro-Oeste e Nordeste, desbravando uma região antes considerada inapta para agricultura – os Cerrados Brasileiros. Nesta trajetória novamente muitos segmentos tiveram sua participação, começando pela pesquisa nacional que, inicialmente, desmistificou a baixa fertilidade, desenvolvendo sistemas de correção que transformaram aquelas terras em fontes de riqueza para muitos que tiveram coragem e pioneirismo de enfrentar as dificuldades iniciais. Em seguida, as empresas de melhoramento de plantas se encarregaram de criar cultivares adaptadas a solo e clima, viabilizando assim a consolidação deste crescimento. Quando dizemos que estamos concluindo um período de discretos preparativos, significa que estes trinta anos serviram para mostrar a nós mesmos que temos capacidade e condições de participar cada vez mais do desafio de competir com as grandes nações agrícolas do mundo, pois sem aumentar praticamente nada em área, quase dobramos a produção. Isto equivale a dizer que estivemos preparando as armas para a luta. Se para os primeiros movimentos de agricultura extensiva e mecanizada do sul buscamos tecnologia em outros países, o avanço sobre o Centro-Oeste foi praticamente autóctone, pois não há no mundo região com condições semelhantes. Portanto, tivemos que superar as dificuldades com nossos próprios recursos, e demonstramos competência para isto. 
    Ocorre que desta região exploramos apenas mínima parte, restando ainda a ser incorporado no processo produtivo mais de 90 milhões de hectares, quase três vezes mais que os atuais 39 milhões, sem que se perca nenhuma área de preservação. É área disponível para a agricultura com a tecnologia apropriada totalmente dominada, pois já está sendo bem sucedida nas partes já cultivadas. 
    Se dificuldades existem, os pioneiros estão atentos, muitas vezes realizando as obras que governos não puderam ou não quiseram fazer. Logística de transporte, armazenagem, mercado, tecnologia em sementes, agroindustrialização – pouco a pouco vão sendo superadas as limitações com tenacidade, persistência e criatividade. É chegada a hora de se levar a sério a agricultura e profissionalizar mais os setores que ainda estão carentes. Temos visto no Ministro Pratini de Moraes esta fé nas nossas potencialidades, lutando para aportar os recursos necessários e, principalmente, liderando o movimento de abertura de mercados para os produtos brasileiros, como deve fazer um ministro desta pasta. Não é por acaso que os países tradicionalmente agrícolas do bloco dos ricos não querem abrir mão dos privilégios concedidos aos seus agricultores. Trata-se de uma guerra da qual devemos participar, e nela o papel do Governo Federal continuará sendo de liderança, seja qual for sua bandeira partidária, principalmente na batalha para garantir acesso aos mercados em igualdade de condições. Se assim for, nossa competitividade aparecerá, com certeza. O que se percebe é que, mesmo lentamente, estas barreiras tendem a diminuir, e então deveremos estar preparados. Neste contexto, há espaço para os pequenos agricultores? Sim, principalmente se estiverem organizados em cooperativas ou associações, com acesso aos mercados e com oportunidades de estar devidamente atualizados em seus nichos de produtos. 
    Dos diversos órgãos governamentais ligados à agricultura espera-se maior apoio e incentivo e não apenas o massacre fiscal e tributário. Eles existem para promover o desenvolvimento e não cerceá-lo. 


    Dos órgãos ambientais espera-se orientação com bom senso, pois se deve lembrar que a espécie mais importante da natureza a ser preservada é a humana. Ecologia e economia devem andar de mãos dadas. Se não sabemos conviver, devemos aprender e superar os radicalismos existentes em ambos os lados. 
    O Brasil possui uma legislação bastante completa, no que tange à sua produção e preservação ambiental, que se bem aplicada e de forma equilibrada, pode se transformar em fator positivo de competitividade no mundo globalizado, facilitando a abertura, tanto nos mercados de commodities como nos mercados de nichos. Porém, todos os esforços de fiscalização pelo aparato público se concentram sobre as atividades devidamente legalizadas, havendo muito pouco empenho e até condições de se combater as ilegalidades, informalidade e pirataria que, muitas vezes, são os principais e desleais concorrentes dos que investem verdadeiramente no futuro do desenvolvimento do país. Esta é uma tarefa intransferível dos governos: fazer com que a lei seja cumprida na sua plenitude. A agricultura é uma atividade permanente que deve ser realizada de forma sustentável, sem agredir o meio ambiente, porém deve ser realizada. O nosso país, neste aspecto, é tão rico, que teremos seguramente condições de promover esta convivência. É necessário, porém, altas doses de empatia por parte de todos. 
    Temos terra em abundância, clima favorável praticamente o ano todo, um povo criativo e trabalhador e um país organizado politicamente; estamos no hemisfério sul e podemos produzir na entressafra dos principais concorrentes, além de podermos ter, em algumas regiões, duas safras por ano. São muitos os pontos positivos, porém devemos atacar com maior empenho nossas deficiências, nossa logística de transporte, investir muito mais em pesquisa, abrir mercados no mundo e agregar mais valor a nossos produtos agrícolas antes de exportá-los. 
    Ampliar a interação entre os segmentos das diferentes cadeias produtivas, incorporar de maneira responsável, mas pró-ativa e objetiva, as novas tecnologias oriundas da biotecnologia. Como se vê, o caminho é indiscutivelmente longo, porém já mostramos que somos capazes de trilhá-lo. Não devemos temer as grandes empresas transnacionais, mas sim procurar aprender com elas. É bom lembrar que estamos em um mundo globalizado e não mais na Ilha de Santa Cruz. Pouco a pouco teremos nossa participação internacional intensificada. 
    Em alguns produtos já temos significativa participação na produção mundial, como soja (23,3%), feijão (17,9%) e milho (5,9%). No entanto, podemos crescer muito mais em função de nossa capacidade competitiva potencial, somada à tendência de redução gradual de subsídios à produção em nossos concorrentes. 
    Com grãos competitivos, poderemos ter produtos derivados também competitivos, onde entra também a nossa carne. No caso da soja, por exemplo, que é nosso principal produto na pauta de exportações, a produção anual, hoje no patamar da 42 milhões de toneladas para uma área de cerca de 15 milhões de hectares, tem um valor bruto superior a 7,5 bilhões de dólares. Para sua produção, foram investidos, somente em custos diretos, cerca de 3,5 bilhões de dólares, tendo sido aportados via financiamento rural aproximadamente 50% deste total. 
    Para os demais produtos, o crédito andou por este nível, sendo maior para os produtos de maior risco, e menor para os de menor risco. Estes fatos indicam que, embora o governo tenha mantido boa política de crédito, o setor privado vem bancando parcela significativa dos investimentos na produção. Sendo a agricultura uma atividade de alto risco, tema abordado na última edição desta revista, o setor carece urgentemente de uma maior participação do sistema de seguro agrícola  privado, que venha somar ao atual Proagro, porém com opções mais diversificadas de garantias à produção. 
    Para finalizar esta reflexão, gostaríamos de abordar, como fundamental em todo este processo, a participação do segmento sementes. Aí está a base do desenvolvimento. Na época das grandes expedições que desbravaram o mundo a partir da Europa, o maior tesouro trazido a bordo dos navios eram, sem dúvidas, as sementes e os animais. E assim se disseminou a agricultura em todos os continentes a partir dos centros de origem das espécies. Mesmo que se tenham todos os fatores necessários à produção, se faltar a semente nada se produz. Não se descobriu ainda a geração espontânea, portanto, este segmento é fundamental. 
    Em nosso país muito se fez no sentido de se organizar o setor sementeiro e o resultado se exprime pelos números comentados no início desta reflexão. 
    Na medida que se dispõe da tecnologia apropriada, seja em que nível tecnológico for, se pode esperar bom resultado. Uma semente apropriada não é somente aquela que germina. Nela devem estar contidos todos os atributos exigidos pela produção e também pela indústria e pelo consumidor. Estes atributos devem ser previamente pesquisados e testados apropriadamente nos diferentes ambientes em que vai ser cultivada e posteriormente consumida.
    Não se admite mais que se produza sem se saber antes todo o caminho que aquele produto vai percorrer. Esta é a visão de cadeia que se inicia no pesquisador que gera uma nova cultivar, passando pelo agricultor, o beneficiador e armazenador, pela assistência técnica, pelo processador industrial, ou simplesmente o intermediário do comércio, para finalmente chegar no consumidor. Vemos que tudo começa na semente e na sua potencialidade genética. 
    Há muitas formas de se produzir e há muitas ferramentas para se criar tecnologias, assim como existem muitos tipos de mercados. A diversidade é imensa, as soluções cada vez mais específicas e particulares para públicos cada vez mais segregados e exigentes, ou carentes, que necessitam o atendimento nutricional pelo menor custo possível. Vê-se logo que a segregação da produção é cada vez mais requisitada. Para se competir é preciso estar preparado. E é na semente que tudo se inicia. Seja ela criada de forma convencional ou transgênica, seja produzida de forma orgânica ou tradicional, a semente é indispensável. Por isto, se deve ter respeito por ela e por quem cuidadosamente a desenvolve, a modifica e adapta para as diferentes demandas das pessoas e dos animais, por quem promove a arte do melhoramento genético das espécies. 
    Romper a barreira das 100 milhões de toneladas de produção de grãos é, sim, muito significativo para todos nós brasileiros, mas nos ensina que para sermos o verdadeiro celeiro do mundo devemos, mais do que nunca, estar unidos em torno do mesmo objetivo. Todos, o meio rural e o meio urbano, quem produz e quem consome.
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