Análise de Risco

A dinâmica e a complexidade dos novos eventos de biotecnologia na cadeia de produção de sementes

Edição XXII | 02 - Mar . 2018
Fabricio Becker Peske-fabricio@seednews.inf.br
Luís Eduardo Panozzo-lepanozzo@ufpel.edu.br
    Ao analisarmos fatos que contribuíram para o desenvolvimento de diferentes setores do país no passado, percebemos que poucas áreas possuem tanto dinamismo e importância quanto o da agricultura.  Muitas tecnologias e conhecimentos aplicados mudaram significantemente o nosso dia a dia, trazendo cada vez mais segurança alimentar para o povo, além de diversas vantagens ao agricultor, possibilitando incrementos de caráter qualitativos e quantitativos na produção. 

    Podemos citar exemplos como a revolução verde com o desenvolvimento de cultivares adaptadas a diferentes regiões e sementes de alta qualidade, técnicas de manejo e sistematização, a sintetização da ureia no início do século XX, ou, até mesmo, o desenvolvimento e expansão do plantio direto no cerrado brasileiro. Porém, nas últimas décadas, a tecnologia de maior impacto tem sido indiscutivelmente relacionada aos eventos da biotecnologia inseridos nas espécies cultivadas, os quais têm trazido dinamismo e mudanças no cenário agrícola.

    A área semeada mundialmente com materiais geneticamente modificados (GM) nestes últimos 20 anos aumentou 110 vezes, passando de 1,7 milhão para 185,1 milhões de hectares em 2016. Este significativo crescimento foi liderado principalmente pela cultura da soja, a qual representa atualmente 50% de toda a área mundial cultivada com materiais GM, seguido pelo milho, algodão e canola. Estes materiais são cultivados em 26 países no total, sendo que 19 destes países são considerados desenvolvidos e 7 são subdesenvolvidos. 

    Segundo dados da ISAAA, o Brasil se mantém como segundo maior produtor de materiais GM, somente atrás dos EUA, tendo semeado no ano de 2016 mais de 49 milhões de hectares, representando 27% de toda a área global de OGM em diferentes culturas. Assim, como nos EUA, a adoção dos agricultores por cultivares OGMs nas culturas da soja, milho e algodão apresentam-se em níveis acima de 93%. Com um crescimento vertiginoso nos últimos anos, o Brasil tem se destacado como a maior força em evolução de cultivo de OGMs no mundo. Em 2016, por exemplo, a área cultivada com OGMs aumentou 11% em relação ao ano anterior, elevação alcançada principalmente pela soja (32,4 milhões de hectares), milho de safra e safrinha (15,7 milhões de hectares) e algodão (800 mil hectares).

    Assim, com a constante evolução e crescimento vertiginoso da utilização de OGMs, devemos primeiramente relembrar que a primeira geração de materiais GM visou atender às demandas dos produtores rurais para incrementar a produtividade das lavouras com um melhor controle das plantas daninhas devido à tolerância das culturas ao herbicida glifosato. A segunda geração inclui a combinação de diferentes “eventos”, chamada de piramidação ou “stack”, envolvendo resistência a insetos e mantendo a tolerância aos herbicidas, além de eventos capazes de ajudar a mitigar possíveis mudanças agroclimáticas dos diferentes locais de cultivo. 

    Já a terceira geração de materiais transgênicos, visa atender a demanda dos consumidores, como por exemplo alimentos com maiores teores de proteínas, vitaminas e diversos compostos benéficos à saúde. Com isso, nos próximos anos, o desenvolvimento e lançamento de novos eventos da biotecnologia segue uma tendência sem fronteiras, podendo assim ser considerada uma estratégia das companhias alimentícias para atingir maior aceitação de seus produtos.  

    Hoje ocorre que, naturalmente, observamos um declínio do uso de cultivares com eventos “isolados”, sendo este fato vinculado à comercialização crescente de materiais contendo combinação de diferentes eventos supracitados, como resistência a insetos, tolerância a herbicidas, qualidade de produtos, dentre outros. Esta combinação de eventos “piramidados” ou “stack” já ocupou 41% da área semeada no mundo no ano de 2016, alcançando 75,4 milhões de hectares.

    Considerando esta tendência de crescimento de eventos “piramidados” e futuros lançamentos projetados mundialmente, o cenário para 2020 demonstra ser sem precedentes até o momento, o qual fornecerá variadas opções de genomas contendo combinações dentre dois a cinco eventos com diferentes propósitos.

    Neste contexto, esta alta complexidade de produtos combinando diferentes cultivares e eventos (isolados ou piramidados) ofertados por diferentes empresas, exige adaptações de toda a cadeia produtiva e comercial para garantir qualidade dos serviços e produtos, sem acarretar problemas no agronegócio.

    Um dos principais atributos dos lotes de sementes se refere à qualidade genética e, assim, devido à natureza complexa do cenário prospectado para o futuro, é necessário haver clareza em relação aos riscos envolvendo mistura de diferentes eventos ao longo do processo de produção das sementes. Muitos riscos existentes apresentam-se com alta probabilidade de ocorrência, porém com reduzida capacidade de impactar o agronegócio. Assim, devemos primeiramente focar nossa atenção a riscos com alta severidade e, principalmente, alta capacidade de ocorrer em nosso ambiente de trabalho.


SEMEADURA (S)

   
 Como podemos observar no quadrante “3” da figura sobre análise de risco, há pequena probabilidade (nível 3) de mistura ao longo do manejo das embalagens durante a semeadura, o qual tem maior chances de ocorrência se houver tratamento in loco (na fazenda), especialmente se sua respectiva identificação for precária. Porém, devido à subsequente multiplicação das plantas no campo, a presença da mistura pode passar a ser significante (nível 9 de severidade) nos lotes gerados e comercializados no futuro. Assim, a severidade deste risco deve ser levada em consideração para que haja apropriados controles do processo, como inspeções, amostragens, rastreabilidade e controles de pós-colheita.

COLHEITA (C)

    No caso da colheita, há maior probabilidade (nível 7) de haver misturas devido à complexidade de limpeza de toda a estrutura da colhedora durante a troca de materiais (variedades), pois sabemos que produtores de sementes multiplicam várias variedades em suas propriedades rurais. Neste caso, há também alta severidade (nível 7), porém menor do que nos demais casos ainda mais sérios.


TRANSPORTE (T)

   
Quanto aos caminhões utilizados para o transporte de sementes a granel, nos referindo ao volume bruto sendo colhido, geralmente as limpezas são realizadas pelo motorista ou equipes envolvidas no processo. No entanto, há alta probabilidade de permanecerem algumas sementes em alguma parte nas estruturas do veículo, como carroceria, correntes ou pneus. Por outro lado, o volume de mistura em questão é insignificante na grande maioria dos casos. Assim, não há danos expressivos ao lote sendo transportado. 

MOEGA - RECEBIMENTO (M)

    Durante o recebimento do volume bruto de sementes, a probabilidade de ocorrência (nível 5) de mistura na moega é relativamente menor do que na colhedora, porém sua severidade permanece sendo alta (nível 7), pois as ações de contenção e eliminação do risco no processo adiante são limitadas, principalmente se a situação de risco à qualidade genética não for detectada pela equipe de “UBS” e o responsável técnico, sendo necessário, em todos estes processos, um alto nível de qualidade no controle e rastreabilidade dos materiais.

    Por experiência própria, como exemplo em misturas de colheita, há alguns anos atrás, presenciamos a ocorrência de troca de caminhões destinados para colheita, incluindo suas instruções e identificações necessárias para correta designação do material bruto e rastreabilidade dos lotes colhidos. Neste caso, foi possível observar claramente que a mistura ocasionada nos caminhões e subsequente processos de pós-colheita prejudicou dentre vários níveis de intensidade, até 10 lotes colhidos nas 48 horas seguintes de trabalho. Obviamente, os lotes colhidos apresentaram níveis altíssimos de mistura, enquanto que os lotes colhidos posteriormente, apresentaram menores índices de mistura. No entanto, é importante mencionar que todos os lotes necessitaram ser descartados por apresentar presença indesejada de OGM.

SECADORES (Se)

    A mesma probabilidade mediana de ocorrência apresenta-se nos secadores utilizados, porém a severidade das misturas (nível 4) geralmente não oferece riscos tão expressivos como nas demais etapas da atividade, pois os volumes de sementes envolvidas são um pouco menores, principalmente em secadores autolimpantes, como muitos de ação intermitente. Já, em elevadores, há maior probabilidade de ocorrência de misturas devido à alta exposição das sementes e seu constante movimento. Assim, como há diversos tipos e arranjos estruturais dentro das UBS envolvendo diferentes maquinários, seu potencial de severidade deve ser levado em consideração.

TRATAMENTO DE SEMENTES (TS)

    Para o tratamento de sementes industrial (TSI), geralmente há média probabilidade de ocorrência (nível 4), porém altíssima severidade (nível 8) se ocorrer misturas ao longo do processo, pois diversas estruturas são envolvidas na atividade, além de subjugar altos volumes de sementes e diferentes lotes à constante movimentação, exigindo altos níveis de controle, rastreamento e identificação por parte das equipes. Além disto, sementes tratadas impossibilitam a posterior identificação visual de quaisquer misturas no teste de “verificação de outras cultivares” (VOC). Por outro lado, como lotes tratados que não são utilizados não serão comercializados como grãos e, eventualmente exportados como nos demais casos, este risco, entretanto, não ocupa o maior posto de severidade dentre a lista das atividades do processo.

LABORATÓRIO (L)

    As atividades de amostragem, testes de qualidade genética em laboratório e armazenamento podem eventualmente apresentar falhas, muitas vezes envolvendo erros humanos; porém, devido ao usual controle automatizado e computadorizado destes processos, a severidade dos riscos ao longo das etapas são reduzidos e, geralmente, controlados a tempo de não haver danos à cadeia produtiva.

DESCARTE (D)

    Ao longo de todo o processo, volumes de grãos descartados por qualidade ou limpezas ao longo das atividades são acumulados para posterior venda e envio a unidades de processamento, as quais destinarão os produtos para alimentação humana e animal, além de exportá-los. Assim, o maior foco e atenção devem ser direcionados a esta etapa do processo, pois tanto sua probabilidade de ocorrência (nível 8) como severidade (nível 10) são significativamente altos.

    Geralmente, materiais contendo novos eventos GM (traits) não são comercializados até que todos os países importadores aprovem a tecnologia em seu território, pois a exportação de grãos com eventos GM a países cuja aprovação ainda não foi implementada pode acarretar em sérias barreiras do produto ao país de origem, ou no mínimo, ao porto ao qual a carga foi originada, conforme já ocorrido no passado. Assim, o rigor no controle de pureza genética e isolamento de materiais com “traits” específicos deve ser prioridade para cada gestor e empresário envolvido na produção de sementes. 

    Em menor escala, misturas em lotes de sementes trariam onerações e cobranças indevidas de taxa tecnológica ao comprador das sementes certificadas, havendo subsequentes complicações a todas as partes envolvidas, cuja solução não vem a ser nada menos complicada, a menos que todo o descarte gerado seja considerado como contendo presença de todos os eventos (traits) em questão.

    Devido à complexidade do cenário futuro, há, sem dúvidas, diversas ações de controle e contenção necessárias a serem implementadas com sucesso nas diversas atividades de produção em cada empresa, de forma a garantir o pleno atendimento da cadeia sem causar danos ao agronegócio. Porém, apenas ao observarmos e seguirmos algumas práticas já existentes em nosso dia a dia e exigências simples de legislação, como o rastreamento de sementes e mapa de produção devidamente planejado, muitos riscos serão reduzidos dentre nossas equipes e estruturas.

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