Decisões Judiciais: Existe Isso?

Edição VIII | 06 - Nov . 2004
Antonio Carlos Souza de Albuquerque Barros-acbarros@ufpel.edu.br

   Considere-se autuado, executado, chamado, convocado ou obrigado, por correspondência entregue pelo oficial de justiça, a depor em audiência marcada pela justiça. Se você não tem, como se diz, "culpa em cartório", maior torna-se sua surpresa. E você se pergunta: "Que será que eu fiz?" "Será que não paguei alguma conta e agora estão  processando a mim?" "Que será que eu fiz?". Bem, chega de conjeturas e imaginações.               
    Pensa-se novamente: "Não adianta, temos que tomar providências. Vamos logo, não te amarra Antonio. Vai logo ao cartório do Fórum local e vai ver o que te aconteceu." Chega-se ao Cartório e se verifica que, realmente, é uma intimação para depoimento. O que você faria? Imediatamente eu, pelo menos, telefonei para casa, explicando o que ocorreu. "Bah, que alívio!"(expressão gaúcha). Isso tudo ocorre com mais de meio ano de antecedência, para que você não dê aquela famosa desculpa: "Tchê, acho que nessa data vou tê que viajá"(essa seria, mais ou menos, como soaria e como se pronunciaria essa frase, aqui no Rio Grande do Sul). Já se sabe e se soube que não colou. Passou-se o tempo e novamente veio, dessa vez, a oficial de justiça. E ainda salientou que: "Seria bom não deixar de comparecer, pois causará uma série de problemas e/ou implicações". Esse foi o aviso final. Não há outra alternativa. Resta-nos esperar a data. E o dia chegou. Dirigimo-nos cedo, bem cedo, antes da hora marcada, para as dependências do Foro local.               
    A expectativa era muito grande, pois permanecíamos sentados, no local de espera, como se nada tivéssemos a declarar, ou seja, como que querendo dizer para aqueles que ali chegavam ou passavam: "Eu não devo nada, não temo nada e não matei ninguém, tá bem? Não precisam ficar olhando para mim, pois eu sou limpo, tá bem?" Após uma longuíssima espera, talvez de meia hora, que me pareceu mais de duas horas, chegou a minha vez. Lá fui eu. Ao chegar ao local de depoimento, indicaram-me que sentasse bem, mas bem mesmo, no meio da sala. Fiquei cercado por duas profissionais de Direito (advogadas). A que estava à minha esquerda fazia-se acompanhar por uma outra pessoa, que talvez devesse ser a parte interessada (na verdade descobri depois que era mesmo o interessado).               
    À minha frente, alguém que ordenava todo o andamento da tal audiência, que deduzi, deveria ser o chefe da sala (lógico que era o Sr. Juiz) e ainda ditava para uma outra pessoa, que foi a que me chamou para ingressar na sala e passou o tempo inteiro escrevendo(a escrivã) tudo o que eu dizia, sob a ordem, é claro, dele, o Sr. Juiz. "Vai começar a festa", pensei. E começou.              
    Fui identificado para, em seguida, começar o bombardeio. E lá veio a primeira  pergunta. E que surpresa! Veja-a: "Pode uma semente, se armazenada no campo, perder qualidade?" Resposta: Sim, se deixarmos muito tempo no campo, após a maturidade fisiológica, sujeita às variações de clima e a perda de sua integridade tanto física (aparência ruim da semente) como fisiológica ( germinação e de vigor). Outra: "Como a semente deve ser guardada?" A semente deve ser secada e mantida com umidade inferior a 13%, pelo menos, nas condições da região de Pelotas. Pergunta: "Como é determinado se uma semente está viva ou se está morta?" É realizado o que chamamos de teste de germinação, conduzido sob condições ideais de temperatura, substrato (papel esterilizado) e umidade (umedecimento do papel) em germinador (espécie de estufa, com controle de ambiente, onde são dadas todas as condições de sanidade {limpeza}, temperatura ideal e água limpa, apropriada para o processo de absorção pela semente) sem interferência do meio externo.  
              
    “Nem tudo que a justiça quer saber é para cobrar alguma suposta falta cometida.”

    Assim que as perguntas vinham, de um dos lados, eu me dirigia para quem me perguntava. Mas, imediatamente o Sr. Juiz corrigiu-me, dizendo que era a ele que me deveria dirigir e não aos interlocutores, pois ele era o intérprete e condutor daquela "profícua" reunião. Dito isto, passei a reportar-me diretamente a ele, sem pestanejar nem olhar para os lados, mas um pouco "aburrido" pois não mais me era permitido mover-me, passando a, firmemente, olhar para frente, na direção do magistrado, cumprindo ordens.               
    Dando continuidade ao interrogatório, veio mais uma pergunta: "Qual a época apropriada para a semeadura do arroz?" Eu sei que o leigo diz plantio, mas como estava ali, tinha que corrigir, para não ficar chato, como se diz na gíria. Ah, mas antes tive que fazer a pergunta ao magistrado, se ele queria que eu falasse em termos técnicos ou vulgares. Ele me disse, meio que estranhando, que usasse os termos comuns.                
    Por essa razão é que fiz aquela correção ali no início deste parágrafo, falando em semeadura ao invés de plantio. Tive que entrar em variedades, usando os termos comuns, e dizer que a semeadura poderia dar-se entre os meses de outubro, para as variedades mais tardias, em termos de necessidade de temperatura e ciclo. Tive que falar que no "verão" gaúcho, justamente no mês de janeiro, auge da estação, que se ocorrerem temperaturas baixas na época de floração, à noite, a produção diminuirá, não haverá formação da semente e que esse fato é dependente da época de semeadura. Muitas vezes, é o que ocorre no campo, quando o agricultor semeia muito tarde.               
   Outra pergunta: "Qual o valor da semente em relação ao grão?" Olhando sempre à frente, respondi. Normalmente, o valor é duas vezes o do grão. Há casos em que variedades novas chegam a custar três vezes mais. Há casos em que sementes de híbridos de arroz, por exemplo, chegam a 10 ou 20 vezes o valor do grão, fato que também acontece com o milho e outras espécies. Algumas podem até ultrapassar esse valor de comercialização, valendo muito mais do que 20 vezes. Por que? Considere que foi investido naquele produto, que é a nova variedade, muito dinheiro, tempo e esperança de recuperação do investimento e de prestação de serviço ao setor agrícola. Muitas vezes são necessários mais de oito anos para a obtenção de uma nova variedade, além de ter um melhorista/engenheiro agrônomo realizando trabalho de seleção.                
    Mais uma pergunta: "E o aspecto doenças e insetos, como se poderia avaliar?" Há testes específicos para a avaliação da parte sanitária. Os insetos em algumas espécies são fator de eliminação de lotes de sementes, pois danificam o tegumento(casca) e o endosperma(arroz) ou cotilédone(soja), causando não só o dano, mas algumas vezes introduzindo doenças na semente. As doenças também podem ser fator de eliminação, mas é certo que vem com a semente do campo. No momento que encontram condições de desenvolvimento, com certeza, irão "manifestar-se" e causarão sérios prejuízos ao agricultor.

    
    “Meritíssimo, a semente é um ser vivo.” 

    Uma semente mal armazenada, com umidade alta (14,5% a 15,0%) associada a uma temperatura alta (>20°C), com certeza facilitará o aparecimento de pragas e doenças. É fato comum o comprador da semente fazer o armazenamento de sementes, antes da semeadura, em local inapropriado, com goteiras, sem proteção do sol, mal ventilado e assim por diante. Aí veio mais uma pergunta. "A secagem pode comprometer a qualidade das sementes?" Toda semente, logo que colhida com umidade elevada (>20%), tem que ser secada. Temperaturas elevadas na massa de sementes (> 43°C) causam danos térmicos à semente. Se a temperatura estiver acima desse limite, começa-se um processo de "queima" gradativa da semente, à medida que a temperatura passe a não ser controlada. Se o corpo de uma pessoa atingir temperaturas superiores a 38°C, diz-se que ela está com febre. Isso também acontece com a semente. Se não for cuidada, ela morrerá.                
    E foi assim que se estendeu a tarde de perguntas, toda ela voltada para o assunto sementes. Nada que não fosse possível responder. Passado o susto inicial, foi possível concluir que, realmente, não tínhamos culpa em cartório. Que tudo girava em torno do esclarecimento que deveria ser dado para que essa pendência judicial, que existia, fosse solucionada. Qual era a pendência judicial, na verdade? Alguém comprou sementes de arroz e sentiu-se lesado, alegando que sua semente não havia germinado e que estava morta, pois não nasceu (germinou). O produtor e comerciante alegou que o produto vendido tinha procedência e qualidade, pois foi analisado em laboratório e, quando passou para as mãos do comprador, tinha a qualidade (germinação) alegada. Cumprimos nosso dever de cidadão.                
    Dessa maneira, finalmente, depois dessa longa tarde de depoimentos, pudemos verificar que nem tudo que a justiça quer saber é para cobrar alguma suposta falta cometida. Você já se imaginou ali, naquele local prestando depoimento? Talvez algum dia o chefe chame você. Eu já passei por essa. Bah, que alívio!
 

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