Direitos de propriedade e investimento

Edição XIX | 04 - Jul . 2015
Silmar Teichert Peske-silmar@seednews.inf.br

    Na agricultura, uma das maiores inovações tecnológicas é a criação e o desenvolvimento de novas e melhores cultivares, que podem trazer aumento de produtividade, resistência a doenças, insetos, nematoides, frio, calor, seca, umidade, salinidade, melhores qualidades nutritivas, sabor, ciclo, tamanho de planta, entre outras características.

    Isto é obtido modificando a composição genética das plantas através de criação de maior diversidade genética ou rearranjando o seu genoma com ajuda de tecnologia específica.

    Felizmente, são de domínio público, há mais de 100 anos, as técnicas para a criação das cultivares, assunto abordado em disciplinas de todos os cursos de agronomia, e genética principalmente. Além disso, várias universidades oferecem cursos de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado em melhoramento vegetal. Somente no Brasil, são mais de 10 universidades que oferecem esses cursos, as quais colocam no mercado, em conjunto, mais de 50 profissionais por ano. Estes profissionais atuam no mercado de trabalho em programas públicos e privados de melhoramento.

    Além do domínio do conhecimento nos princípios e técnicas do melhoramento vegetal, os países e a comunidade internacional tomaram medidas concretas para coletar e armazenar, em condições seguras, as sementes da diversidade genética das diferentes espécies. Assim, para milho, trigo, arroz, soja e outras tantas espécies, cada uma das quais possui milhares de acessos, há bancos de germoplasma de governos ou centros internacionais de pesquisa como o CIAT, CIMMYT, IRRI e outros. Há, inclusive, o Banco Internacional de Germoplasma, com milhões de acessos, localizado no Polo Norte nas ilhas Svalbard.

    Pode-se considerar que há considerável formação de profissionais, entretanto também são muitas as espécies de importância econômica para serem melhoradas e este trabalho requer tempo, infraestrutura e bastante dinheiro para que, após vários anos (geralmente mais de 10), se possa disponibilizar uma nova cultivar à disposição do agricultor. Neste sentido, para proteger a inovação tecnológica da criação de uma nova cultivar, que tanto benefício para a sociedade pode trazer e tanto esforço requer, os países criaram, em 1961, a UPOV (União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais), que na prática possui duas convenções, a de 1978 e a outra de 1991.

    Esta proteção, aliada aos custos para criação e desenvolvimento de uma nova cultivar, possibilitou que a iniciativa privada entrasse fortemente no melhoramento. A base legal para isso deu-se no Brasil com a entrada do país na UPOV pela convenção de 1978, isto em 1997. Foi uma atitude de tal sucesso que atualmente mais de 70% das espécies de soja, trigo, milho, arroz e algodão são com cultivares criadas e desenvolvidas pela iniciativa privada.


A Proteção: objetivos e benefícios

    É evidente que alguns são contra a proteção, entretanto sem ela não há lugar para a indústria, pois o fruto é incerto. Assim, a propriedade intelectual sobre as cultivares possui, fundamentalmente, dois objetivos:

1 - Reconhecer os direitos da inovação (em parte); e
2 - Permitir investimentos em inovação (principalmente).

    A proteção intelectual torna a inovação intelectual mais fácil, pois possibilita um maior aporte de recursos; mais diversa, pela atuação de mais profissionais; e mais bem sucedida, pelo comprometimento dos atores envolvidos. Os benefícios deste amparo podem ser resumidos em:

1 - Para o agricultor (em menor escala), e
2 - Para a sociedade (em maior escala). 

    O agricultor se beneficia pela inovação tecnológica tendo à sua disposição materiais superiores, quer pela produtividade, pelos atributos agronômicos ou mesmo pelos atributos industriais, fazendo com que tenha um retorno financeiro.
    Por outro lado, o grande beneficiário das inovações tecnológicas é a sociedade como um todo, pois terá à sua disposição alimento (principalmente) em abundância e de qualidade a preços adequados. Para ilustração, salienta-se que para obter-se um kg de carne de frango são necessários 1,6kg de ração, e esta é composta por 67% de milho, ou seja, para um kg de frango necessita-se um kg de milho. Os preços da carne, do leite e do ovo possuem estreita relação com o preço do milho e da soja. Algo similar pode ser considerado para o trigo que entra na composição do pão e da massa, e do arroz, que é praticamente consumido diretamente. 
    Assim, para que o preço do alimento não seja alto, há necessidade de que o agricultor tenha altas produtividades a baixo custo, o que pode ser alcançado pelo uso da inovação tecnológica com cultivares superiores obtidas pelos melhoristas, após vários anos de trabalho e grandes investimentos. 




Formas de proteção
    A proteção das cultivares pode ser obtida de diversas formas, entretanto as mais comuns são através de lei de proteção de cultivares, baseada nas convenções da UPOV de 1978 ou 1991, patente, acordos internacionais, produção de híbridos e contratos.

1 - Lei de proteção de cultivares – Os países da América do Sul possuem suas leis com base na convenção da UPOV de 1978, com exceção do Peru que está na de 1991, isto por ter aderido recentemente. A convenção de 1978 protege as novas cultivares por 15 anos até a semente, ou seja, o agricultor pode utilizar seu próprio grão como semente. Entretanto, toda semente de uma cultivar protegida, para ser comercializada, deve ter a licença do seu respectivo obtentor. 
    Por outro lado, a proteção pela convenção da UPOV de 1991 protege as novas cultivares por 20 anos até o grão, ou seja, caso o agricultor queira utilizar seu próprio grão como semente, deve pagar algo para aquele obtentor que criou e desenvolveu a variedade.
    Algo que merece destaque nas leis baseadas nas convenções da UPOV é a exceção do melhorista, que faculta ao pesquisador utilizar em seu programa de melhoramento a “melhor” cultivar comercial de seu concorrente, sem pedir licença. Isto foi colocado nas convenções da UPOV para manter um alto grau de competitividade entre as empresas de melhoramento vegetal, pois uma empresa, mesmo detentora de um material com alta fatia de mercado, não poderá descansar, sabendo que em alguns anos um novo material, provavelmente superior, estará no mercado possuindo em seu genoma gens de sua variedade.

2-Patentes – Em geral, organismos vivos não podem ser patenteados, ao contrário de processos. Desta maneira, com o advento dos OGMs, em que vários processos são envolvidos, o uso de patente para proteção das inovações se tornou bastante comum.
    A patente é uma das formas mais robustas de se proteger uma inovação tecnológica, pois a proteção vai até o produto industrial. Pode-se considerar que aquele que utiliza material patenteado contribui compulsoriamente com o dono da patente.
    A patente é válida por 20 anos, no entanto, como são várias as etapas para colocar um material no mercado, a exploração efetiva de uma patente é, em geral, de 10 anos. O tempo começa a contar desde o momento em que o processo é recebido no órgão pertinente do governo, passando por etapas de biossegurança, registro de cultivares e a produção de sementes com todas as suas categorias, o que requer, em média, os 10 anos. Neste tempo a empresa detentora da patente busca ressarcir-se de todos os custos envolvidos e ter um percentual para continuar pesquisando. 
    Outro aspecto da proteção por patente é que não há a exceção do melhorista, ou seja, só se pode começar a utilizar livremente um material patenteado para criação de cultivares após o vencimento da patente. 

3-Acordos internacionais – Os governos, cientes do valor de sua biodiversidade estão em discussão final para um tratado sobre os recursos naturais que podem ser utilizados no melhoramento vegetal, na indústria de fármacos e de cosméticos, entre outros. 
    As discussões envolvem a coleta do material, seu uso e a divisão dos benefícios. Isto está dificultando o uso e o livre movimento de germoplasma entre países.
    Os fóruns de discussão estão sendo a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e o International Treaty on Plant Genetic Resources (ITPGR).
    Este movimento dos países mostra a importância da biodiversidade para a obtenção de materiais superiores e que deve haver uma contrapartida de parte de quem comercializa para aquele que detém o germoplasma. Este processo possui relação estreita com a proteção de cultivares, que também contempla um pagamento para aquele que criou e desenvolveu uma nova cultivar.



4 - Híbridos – Uma das melhores formas para a proteção é o segredo, aliado a contratos bem detalhados. Neste sentido, as empresas investem bastante para o desenvolvimento de materiais híbridos, nos quais se desconhecem seus pais ou, inclusive, o processo técnico de produção, envolvendo a macho-esterilidade.
    Várias são as espécies que são comercializadas através de híbridos, sendo a principal delas o milho; no entanto a grande maioria das espécies pode possuir híbridos. Ocorre que em alguns casos os híbridos ainda necessitam aprimoramento para uma melhor exploração da heterose (caso do trigo).
    O atrativo do híbrido, por parte de quem utiliza as sementes, é que, pelo princípio da heterose, o material tende a produzir mais do que uma cultivar convencional. Por outro lado, o benefício para o dono do híbrido está na proteção de seu material e no preço que consegue colocar nas sementes. As sementes de materiais híbridos custam mais, por dar um maior retorno para quem as utiliza. 

Coleta de Royalties
    O retorno do investimento realizado para criação e desenvolvimento de uma nova cultivar é obtido através do royalty que se paga para comercializar ou utilizar as sementes de uma determinada cultivar. É referente a uso de germplasma.
    No Brasil, com a lei de proteção de cultivares baseada na convecção da UPOV de 1978, o royalty é pago pelo produtor de sementes que licencia junto a um obtentor a comercialização das sementes de uma cultivar melhorada. O agricultor que utiliza seu grão como semente não paga royalties para o obtentor de uma cultivar melhorada.
    Em países que possuem a lei de proteção de cultivares com base na convenção da UPOV de 1991, o royalty pode ser cobrado inclusive sobre o grão utilizado como semente.


    Na França, Alemanha e Inglaterra, há um sistema de coleta de royalty bastante eficiente, no qual praticamente todos pagam. Na França, com a cultura do trigo, todos pagam o royalty na moega, ou seja, no momento de vender o grão, e aqueles agricultores que pagaram no momento de comprar a semente são ressarcidos mediante a apresentação da nota fiscal de compra da semente. Na Alemanha e na Inglaterra, o processo, que está indo bem, envolve uma organização montada pela associação dos melhoristas, a qual faz a fiscalização junto a indústria e às unidades móveis de beneficiamento de sementes.
    Na América do Sul, o Uruguai se destaca pelo seu eficiente programa de coleta de royalties. O programa, que funciona há vários anos, baseia-se num contrato entre o agricultor e o produtor de sementes, no qual mais de 90% dos agricultores que cultivam soja e trigo pagam o royalty para quem criou e desenvolveu a variedade. 
    Em termos médios, o valor do royalty é de 10% do valor da semente, quantia esta que mal paga os investimentos realizados para a criação e desenvolvimento das cultivares. Isto é agravado com a baixa utilização de sementes comerciais em países em que a semente salva não recolhe o royalty. Assim, algumas empresas de melhoramento vegetal não licenciam seus materiais, realizando elas mesmas a comercialização das sementes, sistema esse conhecido como verticalização.  

Coleta da Taxa Tecnológica
    No Brasil, EUA e Paraguai, há materiais protegidos por patente, cujo uso implica no pagamento de um valor conhecido como Taxa Tecnológica (TT).
    Nos EUA,  país que mais patentes possui e onde é possível patentear inclusive uma cultivar, a patente é bem difundida e os agricultores já se acostumaram a pagar a TT. 
    O sistema de coleta da TT no Paraguai merece destaque pela negociação que ocorreu e pela divisão dos benefícios. O primeiro material com recolhimento da TT foi a soja RR, no qual participaram da negociação o dono da patente, os obtentores, os produtores de sementes, as cooperativas, os agricultores organizados, a indústria e o governo. As discussões foram bastante eficientes e se chegou a um acordo de como a TT seria recolhida e distribuída entre os atores. O recolhimento foi na moega e a divisão do benefício foi de 65% para o dono do evento, 13% para os obtentores, 10% para o retentor na moega, 4% para os produtores de semente e 8% para um órgão de pesquisa. Agora, para a soja RR2 Bt, as negociações estão em andamento no mesmo sentido.
    No Brasil, a coleta da TT tecnológica referente à soja RR (cuja patente acabou) foi na moega e, assim, também está sendo realizada a comercialização da soja RR2 Bt, cuja patente encontra-se vigente. No país, as negociações envolveram a indústria (moega), os agricultores e os produtores de sementes. A importância da indústria no contexto está em que ela recolhe a TT do agricultor que não comprou semente. De parte do agricultor, será ele quem usará a tecnologia; cabendo ao produtor de sementes o recebimento da TT de quem compra semente.

Situação no Brasil
    O reconhecimento por parte dos agricultores, referente aos benefícios dos materiais patenteados, pode-se considerar como excelente, pois praticamente todos pagam a TT, e o índice de utilização destes materiais é alto, tendendo a aumentar (caso soja RR2Bt). 
    Por outro lado, o reconhecimento dos benefícios por parte dos agricultores sobre os benefícios das inovações tecnológicas que resultam em cultivares superiores pode ser considerado baixo, pois muitos agricultores não pagam o royalty para utilizar as sementes de uma cultivar melhorada. No caso de soja, este percentual alcança praticamente 40%, em arroz é mais de 50%, em trigo mais de 30% e em caso de feijão é superior a 80%, isto para citar alguns exemplos.
    Felizmente, a plataforma legal está funcionando bem para os materiais GM que são patenteados e que muitos benefícios trazem para o agricultor e principalmente para a sociedade. Entretanto, a plataforma legal baseada na lei de proteção cultivares, que protege as cultivares com maior potencial de rendimento, maior resistência à seca, maior resistência a doenças e outros atributos agronômicos, pode ser considerada deficiente pelo expressivo uso de semente salva pelo agricultor que não contribui com o royalty, essencial para manter e estimular a criação de novos e melhores materiais. 
    Os benefícios do melhoramento vegetal convencional são tão ou mais importantes que os obtidos via transgenese, merecendo um incentivo similar pela sociedade. A contribuição do melhoramento tem sido enorme e possui um potencial ainda maior de trazer benefícios para o agricultor e a sociedade, com sustentabilidade ambiental.


Resumo
    A proteção das inovações tecnológicas possibilita que haja investimento em pesquisa e desenvolvimento pelo setor privado, com benefícios para o agricultor e a sociedade através de práticas que levam à sustentabilidade ambiental. O direito intelectual pode ser via proteção de cultivares baseada na convenção da UPOV de 1978 ou a de 1991 (melhor), assim como de patente (mais robusta). A proteção de cultivares contempla a exceção do melhorista, enquanto a patente não, o que faz uma grande diferença na diversidade genética entre os materiais, com efeitos em seus atributos agronômicos como rendimento e resistência a doenças.
    Os sistemas de proteção via lei de patente e de proteção de cultivares podem coexistir em harmonia, entretanto requerem, em muitos casos, que a proteção de cultivares seja mais eficiente para possibilitar investimentos na criação de novos e melhores materiais.
    As ferramentas para a obtenção de materiais superiores, como a capacitação de pessoal e a diversidade genética, estão presentes em praticamente todos os países, sendo necessária a sua manutenção e possível aprimoramento. Isto, em países em que o agronegócio possui parcela importante do PIB, é essencial.
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