A agricultura brasileira apresenta atualmente um desempenho impressionante, comparável e às vezes superior a países produtores e tradicionais exportadores de produtos agrícolas. Os números não deixam dúvidas que o agronegócio brasileiro é moderno, eficiente e competitivo, sendo um dos líderes mundiais na produção e exportação de vários produtos agrícolas. Entretanto, nem todos conhecem a origem de toda essa competitividade. Ela é consequência de uma estratégia de governo estabelecida nos anos 1960/70, quando se reconheceu que o Brasil era um país de vocação agrícola e que precisava de políticas públicas bem direcionadas, que criassem condições para um processo de modernização da nossa agricultura.
Para apoiar todo esse desenvolvimento, três grandes pilares foram concretados através de políticas públicas. Foi através delas que se disponibilizou o crédito agrícola, que não só criou condições para produtores familiares do Sul do Brasil adquirirem terras agrícolas no Centro-Oeste, mas também financiou os investimentos necessários para que eles transformassem essas terras em áreas agrícolas altamente produtivas. Outro pilar fundamental foi o empreendedorismo dos nossos agricultores do Sul, que enfrentaram (e ainda enfrentam) as adversidades das novas fronteiras agrícolas (falta de estradas, hospitais, lazer, etc), e por último, mas não menos importante, o alto investimento público em pesquisa e capacitação na área agrícola.
No bojo dessas políticas de investimentos se encontra o setor de sementes, considerado a base para a competitividade do agronegócio e para uma agricultura de sucesso, pois é na semente que é embarcada a maioria das inovações tecnológicas desenvolvidas pela pesquisa.
A importância do setor de sementes foi sempre reconhecida pelos gestores públicos. Até os anos 1960, na época do antigo sistema de pesquisa agropecuária coordenado pelo então Departamento Nacional de Pesquisa Agropecuária (DNPEA) já existiam iniciativas públicas para a área de sementes, principalmente relacionadas com o financiamento da pesquisa e a produção de pequenas quantidades de sementes em seus institutos regionais. Talvez a primeira intervenção pública na área de sementes mais evidente ocorreu em 1965, quando se estabeleceram normas para a fiscalização do comércio de sementes.
Um marco histórico no desenvolvimento do setor de sementes ocorreu logo depois, com a criação do Plano Nacional de Sementes (PLANASEM), no final dos anos 1960. O plano apresentou um diagnóstico da situação de sementes da época, estabeleceu as principais diretrizes e competências dos órgãos governamentais na produção de sementes básicas e comerciais, definiu metas a serem cumpridas e apresentou os custos e benefícios que traria o investimento público.
Merece destaque a concepção do PLANASEM, que visava estimular e desenvolver empresas privadas do setor de sementes, reservando-se ao setor público iniciativas pioneiras, que por sua natureza, são de responsabilidade do governo. O documento estabeleceu que a produção e o mercado de sementes só poderiam desenvolver-se no ritmo esperado através da iniciativa privada, quando esta fosse estimulada pela demanda.
Para a implementação do PLANASEM, foi criado no inicio dos anos 1970 o AGIPLAN(Apoio Governamental à Implantação do Plano Nacional de Sementes), com seis projetos: 1- Pesquisa sobre tecnologia e análise de sementes; 2- Melhoramento e experimentação; 3- Produção, beneficiamento, e armazenamento de sementes; 4- Organização da produção de sementes; 5- Fiscalização do comércio de sementes; e 6- Treinamento e aperfeiçoamento de pessoal. O AGIPLAN teve duração de cinco anos, com orçamento de 37 milhões de dólares, dos quais oito milhões conseguidos junto ao Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID). Seguem detalhes de cada um dos projetos mencionados:
Pesquisa em Tecnologia e Análise de Sementes
O projeto estabelecia que a qualidade da semente deve ser obtida, avaliada e mantida. Neste sentido, foi necessário desenvolver e identificar tecnologias para melhorar a qualidade das sementes, pois nos anos 1970 a qualidade das sementes não era alta, aceitando-se inclusive lotes de sementes para comercialização com percentagem inferior a 80% de germinação e com contaminações de invasores bastante altas, como era o caso de sementes de arroz vermelho, com mais de 15 sementes por amostra.
Ele também teve a finalidade de atender: a) a fiscalização do comércio de sementes, na qual as sementes devem ter uma qualidade mínima para comercialização, b) a certificação de sementes, com seus padrões e processos, e c) aos agricultores, que teriam informações mais precisas da qualidade de sementes.
Pode-se considerar que este projeto teve amplo sucesso, pois atualmente as sementes são comercializadas com germinação mínima de 80% e, para algumas espécies, como milho, as empresas somente colocam no mercado lotes com germinação acima de 90%. Para sementes de soja há empresas que estão garantindo mais de 90% de germinação das sementes colocadas no mercado, e já se inicia a prática de comercializar sementes pelo número delas contido nas embalagens. Em relação à contaminação com sementes de arroz vermelho, a tolerância é zero para a semente certificada. Muito outros exemplos poderiam ser utilizados.
A geração de ciência e tecnologia de sementes foi tal que permitiu ao Brasil possuir suas próprias regras de análise de sementes (RAS), cuja última atualização é de 2009. É evidente que apenas partes das recomendações das regras foram desenvolvidas no país, justificando, entretanto, a adoção de RAS próprias. Outro elemento que mostra a pujança da pesquisa em sementes no Brasil é a revista Journal of Seed Technology (antiga Revista Brasileira de Sementes), que é publicada, desde os anos 1970, tendo mais de 1800 artigos publicados sobre sementes.
A avaliação da qualidade das sementes tornou-se tão importante que o país possui atualmente mais de 250 laboratórios de análise de sementes, sendo dois credenciados pela International Seed Testing Association (ISTA), para fins de importação/exportação de sementes.
Melhoramento e experimentação
O objetivo principal deste projeto foi, através de políticas públicas, fomentar a criação de novas cultivares com características agronômicas, comerciais e de industrialização, reconhecidamente superiores, por região do país. Assim, para lançamento de uma cultivar havia uma comissão para julgar seu desempenho, que no caso de rendimento, deveria ser no mínimo 5% superior a uma cultivar testemunha. Esta comissão foi extinta posteriormente com a Lei de Proteção de Cultivares, que contempla uma caracterização juramentada com validade nacional e não por região. Atualmente, para efeitos de crédito e seguro, há o zoneamento agrícola contemplando as cultivares recomendadas.
Curso sobre análise de sementes na UFPel em 1973
Nos anos 1970, praticamente 100% dos programas de melhoramentos eram públicos, sendo, no entanto, gradualmente substituídos por investimentos privados. Na década de 1980, já havia empresas privadas dedicando-se ao melhoramento vegetal, conforme era o objetivo do PLANASEM, sendo os melhores exemplos empresas de milho, juntamente com as cooperativas, no caso específico do melhoramento de trigo. Vale destacar empresas individuais de melhoramento que muito contribuíram, como a OR Melhoramento, em trigo (até hoje forte no mercado), e a FT Sementes, em soja, que nos anos 1990 foi vendida.
Atualmente, mais de 80% das sementes utilizadas pelos agricultores são oriundas dos programas privados de melhoramento genético, o que indica o sucesso das ações implementadas pelo AGIPLAN, deixando para a iniciativa privada o melhoramento genético das espécies mais importantes e ficando com o governo o melhoramento em espécies pouco atrativas como negócio, mas estratégicas para a segurança alimentar. Além disso, cabe ao Governo investir em pesquisa básica necessária para o avanço do conhecimento.
Produção, beneficiamento e armazenamento de sementes
Nos anos 1970, o país possuía vários programas de melhoramento vegetal, entretanto as sementes oriundas das variedades melhoradas não chegavam ao agricultor, sendo necessárias ações específicas com foco na produção de sementes.
Tornou-se então política do Governo criar condições para que as instituições públicas de pesquisa não somente criassem novas cultivares mas também produzissem sementes básicas em quantidade para abastecer os produtores de sementes, cabendo a estes, por sua vez, atender aos agricultores. A Embrapa, que foi criada em 1973, possuía naquela época o serviço de produção de sementes básicas (SPSB), que se manteve com essa missão até o fim dos anos 1990.
Por outro lado, naquela época também havia instituições de pesquisa que criavam e desenvolviam as variedades, produziam as sementes e comercializavam junto aos agricultores, sendo o caso mais notório o monopólio da produção de sementes de algodão por instituições públicas de pesquisa, que se manteve até o início dos anos 1990.
Realmente, essa política de produção de sementes teve grande sucesso, ao aumentar de forma acentuada a disponibilidade de sementes das variedades melhoradas aos agricultores. Isto foi possível através do aumento de infraestrutura física (unidade de beneficiamento de sementes) e de pessoal treinado por parte das instituições de pesquisa e dos produtores de sementes. Como também foi significativo o aumento do uso de sementes comerciais pelos agricultores, o mercado de sementes tornou-se atrativo, propiciando a entrada no negócio de muitos produtores de sementes, os quais, atualmente, ultrapassam a 1.800.
Placa na ESALQ em homenagem ao AGIPLAN e a Universidade Estadual de Mississippi - EUA
Nos dias atuais, pode-se considerar que praticamente toda semente é produzida pela iniciativa privada, que oferece sementes em quantidade e qualidade para os agricultores. Para isso, estão envolvidos nesse segmento mais de 7.500 engenheiros agrônomos e centenas de outros profissionais, que atuam como responsáveis técnicos pela produção e beneficiamento das sementes.
A evolução da produção de sementes a partir dos anos 1970 necessitou de duas atualizações da lei de sementes, uma de 1977 e a outra de 2003, que contemplaram aspectos de produção e comercialização de sementes, propiciando uma plataforma legal da atividade.
Dentro deste contexto de produção de sementes, ressalta-se a importância da criação da Lei de Proteção de Cultivares, em 1997, que contempla um retorno financeiro para quem cria uma cultivar. Desta forma, é recolhido um royalty sobre toda semente comercializada, o qual servirá como incentivo para criar novas cultivares superiores. Nos casos em que o obtentor não verticaliza a comercialização de sementes, o royalty é pago pelo produtor de sementes, que agrega o valor no preço de sua semente (em geral, ao redor de 10% do valor da semente).
Esta política pública de reconhecer o trabalho do obtentor propiciou que a iniciativa privada entrasse de vez no melhoramento vegetal, o que proporcionou um aumento acentuado de novos e melhores materiais à disposição do agricultor.
Organização da produção de sementes