Sementes do Brasil (de 1959 a 1964)

Edição I | 01 - Set . 1997
Clovis Terra Wetzel-diretoria@seednews.inf.br
    Como se verificou no primeiro artigo desta série, predominava, ao longo da linha litorânea, a produção de açúcar e tabaco; arroz, anil e algodão mais afastadas da costa. A colheita de produtos naturais, como o cacau no Norte; a produção de couro e carne no Sul e Nordeste, completavam a exploração econômica do Brasil, no final do Período Imperial. Nos 68 anos que separam a Independência da Proclamação da República, a agricultura começa a diversificar-se por conta de dois notáveis eventos: a imigração europeia, e a abolição da escravatura. Na segunda metade do Século XX, um conjunto de eventos seria responsável pela formação de um nova agricultura no País: o aumento da população brasileira; a primeira e a segunda guerra mundial que estimularam o processo produtivo agrícola, em virtude de muitos países terem concentrado esforços nas operações bélicas, passando a importar produtos agrícolas; e a política de substituição das importações.                             
    Resultado: diversificação da agricultura e necessidade de sementes, foi o que ocorreu. A produção e a distribuição de sementes exercida pelo Ministério da Agricultura e secretarias estaduais, não deixavam espaço para o setor privado desenvolver-se nessa área. Desestruturado, o mercado de sementes era extremamente precário. As novas cultivares criadas por setores governamentais não fluíam para a lavoura, na ausência do elo fornecedor de sementes básicas e de produtores de sementes, em que pese a grande diversificação agrícola, no período 1959-1964. Na sequência cronológica, até o final da década dos anos 50, não estava configurado o setor brasileiro de sementes e mudas - formado pelos setores, público e privado - como é visto hoje, já que, como considerado neste artigo, as atividades de produção e distribuição de sementes de cereais, oleaginosas e leguminosas, bem como de obtenção de mudas, eram desempenhadas pelos governos, Federal e Estadual, notadamente em São Paulo. Era o modelo estatal.                              
    A Campanha da Fitossanidade e da Semente de Trigo, encetada pelo Ministério da Agricultura, em 1959, definiria um novo modelo de produção de sementes no Brasil, através de cooperativas que, posteriormente, estendeu-se para produtores de sementes e empresas especializadas. 
             
    “De início, as novas cultivares criadas por setores do governo não chegavam ao produtor, por falta de um elo fornecedor de sementes básicas.”         
       
    Era o modelo privado que substituiria o modelo estatal, em franco declínio. Costuma-se dividir, por isso, a história das sementes no Brasil em duas etapas: antes e depois de 1959. A Campanha da Fitossanidade  e da Semente de Trigo foi idealizada para estabilizar a produção de trigo que sofria reveses face a sucessivas frustrações de safra, devidas à ataques de doenças, que ocorriam em toda a zona produtora, situada nos três estados da região Sul. Acreditava-se que a adoção de certos procedimentos na produção da semente de trigo e o seu tratamento químico, viriam a minimizar a severidade das doenças. Para reverter as dificuldades de um lavoura que recebia enormes incentivos governamentais, inclusive com moratória de dividas de custeio dos agricultores, junto ao Banco do Brasil, cabia ao Ministério da Agricultura fazer alguma coisa, antes de que acabasse novamente a cultura do trigo no País, tantas vezes tentada. Para entender o foco das preocupações governamentais, talvez seja preciso lembrar que na pauta das importações era o trigo o produto que consumia o segundo maior valor de divisas, depois do petróleo.                                
    E mais: a política nacionalista, prevalecente na época, justificava de várias maneiras a consolidação da cultura de trigo no País, inclusive para livrar-se da dependência norte-americana no fornecimento deste produto. Desta forma, a Campanha da Fitossanidade e da Semente de Trigo nascia com grande apelo político. Como órgão responsável pela pesquisa agrícola, nos três estados do Sul, ao Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuária do Sul (IPEAS) foi delegada a competência de executar e coordenar a Campanha, com o Banco do Brasil e demais órgãos estaduais relacionados ao tema. Este trabalho começou pelo Rio Grande do Sul, em 1959, onde, em Pelotas, na sede do IPEAS, concentravam-se os pesquisadores de trigo e os técnicos que atuavam em sementes. Pela proximidade e parceria da sede do IPEAS com a Escola de Agronomia “Eliseu Maciel”, incluindo o pessoal da Cátedra de Fitopatologia, cujo titular era o Prof. Manoel Alves de Oliveira -Pelotas viria a constituir-se no ponto estratégico para a condução da Campanha.                                
   A partir do diagnóstico que tecnicamente justificava a Campanha, os fundamentos da organização da produção da semente de trigo seriam então preconizados por um grupo de pesquisadores e professores, destacando entre outros, o Dr. Ady Raul da Silva, melhorista “sênior” de trigo do IPEAS, Prof. Manoel Alves de Oliveira, e Dr. Flavio Faria Rocha, do IPEAS. Ainda de parte do IPEAS, a organização da produção da semente de trigo e de outras culturas, como soja e arroz, posteriormente, tornou-se realidade graças ao trabalho dedicado,  persistente e tenaz de uma plêiade de técnicos que a partir de Pelotas, atuaram nos três estados objeto da Campanha, frequentemente referenciados como o “grupo de Pelotas”, aos quais, neste artigo, se reconhece o mérito pelo desempenho do trabalho então realizado.                               
    Em paralelo ao grupo central de profissionais, gestor da Campanha, na parte referente à semente de trigo, caberia destaque a vários outros técnicos das Secretarias de Agricultura dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina que, pelo seu número bastante elevado, deixam aqui de ser mencionados, individualmente. Da Federação das Cooperativas de Trigo do Rio Grande do Sul (FECOTRIGO), cabe destacar a boa acolhida proporcionada à Campanha pelo então presidente daquela organização. Na Secretaria do Rio Grande, uma referência cabe ao Dr. Áureo Elias, primeiro presidente da Comissão Estadual da Semente do Trigo do Rio Grande do Sul.                                 
   Ao IPEAS, nas circunstâncias referenciadas, coube constituir as comissões estaduais de sementes de trigo (CEST/RS/PR/SC) que representavam os setores envolvidos, direta e indiretamente. Na verdade, estas comissões viriam a referendar dois princípios básicos; que o programa de semente deveria aproveitar as estrutura das cooperativas tritícolas existentes na região; e que a produção deveria adotar um sistema de certificação modificado, nos moldes do existente nos EUA e vários países da Europa, sem, entretanto, considerar o número de gerações, a partir da semente básica, adaptado às condições brasileiras. Assim nascia, no início da década dos anos 60, o atual Sistema de Produção de Semente Fiscalizada, incorporado posteriormente à Lei 6.507, de 1977, cuja base teórica, por sua vez, assemelhava-se ao esquema congênere então adotado na Argentina.                            
    O novo modelo preconizava que as atividades de produzir e distribuir sementes “comerciais” deveriam passar ao setor privado, abandonando-se, neste sentido, o velho e falido esquema governamental.        
       
Fundamentos de um novo modelo - Para implementar um novo sistema de produzir e distribuir a semente de trigo, na qualidade e quantidade necessária à lavoura, era preciso desde logo que se formulasse uma política adequada às circunstâncias: poucos meios disponíveis, no que concernia aos recursos financeiros e humanos especializados, bem como a carência de instalações, máquinas, equipamentos e materiais para serem utilizados no preparo, armazenamento e controle de qualidade da semente. Faltava tudo e foi então preciso improvisar em larga escala, ao longo de todo o processo produtivo.                                
    Criatividade foi o que não faltou. Planejada a produção da semente do trigo, pouco a pouco foram sendo formalizados, no decorrer de 1959 a 1964, os fundamentos de um novo modelo que hoje é o responsável pela obtenção das sementes melhoradas de algodão, arroz, feijão, milho, soja, trigo - carro-chefe do mercado de sementes.      
         
    “A pesquisa centrou-se de início no trigo por ser esse produto o mais importante consumidor de divisas nacionais, depois do petróleo.”       
         
    Os fundamentos do programa de semente de trigo foram os seguintes:
a) produção e distribuição pelo setor privado;
b) adoção de um sistema de produção identificado e visível ao Governo aos órgãos de crédito agrícola e aos agricultores;
c) obrigatoriedade do uso da semente do programa para efeito de financiamento oficial de custeio da lavoura;
d) financiamento da infraestrutura de apoio, no setor governamental, e produtiva, no setor privado:
e) adoção de normas técnicas e procedimentos operacionais para a produção;
f) controle de qualidade da produção nas fases de campo, de preparo e armazenamento da semente.
    Enfim, era preciso organizar a produção das semente de trigo fiscalizada, técnica e operacionalmente, cuidando para que o produto fosse absorvido pelos agricultores.                        
   Começou-se por estabelecer as normas técnicas de produção que incluíam os padrões mínimos de campo, para a obtenção de semente fiscalizada. Foram estabelecidos os padrões mínimos da semente fiscalizada que, em condições de laboratório, determinariam a qualidade requerida. As normas técnicas de produção e outras medidas tomadas pelas comissões estaduais de semente de trigo, estabeleceriam os procedimentos de ordem técnica, administrativa e operacional. Estas normas e procedimentos foram aplicados às cooperativas pioneiras na produção de semente fiscalizada de trigo, no Brasil - de Cruz Alta, RS e Ponta Grossa, PR. Os triticultores da Santa Catarina passariam a ser abastecidos, por alguns anos, pelo Rio Grande.

    
    A sede do antigo IPEAS, em Pelotas /RS, hoje Estação Experimental de Terras Baixas / Embrapa.               
 
    A produção dos primeiros lotes de semente fiscalizada de trigo ocorreu no Rio Grande do Sul, na safra 63/64, em Cruz Alta, totalizando 330.000 sacas(19.800 t). Como a cooperativa não tinha técnico habilitado, as tarefas de vistoria dos campos, o recebimento, o beneficiamento das sementes e a retirada das amostras para análise, foram realizadas pelo Dr. Luiz Humberto Bicca. Aproximadamente a mesma coisa teve de ser feita em Ponta Grossa, no caso, pelo Dr. Aroldo Galon Linhares. Estes técnicos, neste mister, foram os pioneiros da produção da semente fiscalizada de trigo diretamente junto as cooperativas tritícolas. No início dos trabalhos, a supervisão de campo do programa da semente de trigo, esteve a cargo do Dr. Ottoni de Souza Rosa que, com sua conhecida capacidade de trabalho, superaria as dificuldades surgidas.                                 O financiamento para a produção de semente fiscalizada de trigo que incluía aquisição de máquinas e equipamentos; e a construção de instalações para beneficiamento e armazena mento nas cooperativas inicialmente, mas depois também para os produtores de sementes, proporcionado pelo Banco do Brasil - constituiu-se num dos principais fatores que marcaria o êxito daquele modelo de produção da semente de trigo e que viria a ser expandido para outras parte do País e seguido para várias culturas.                             
   Na linha de montagem da infraestrutura de apoio à produção da semente de trigo (e soja), foram instalados cinco laboratório de sementes, para controle de qualidade, com a contrapartida de recurso norte-americano da “Aliança para o Progresso”.

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