Sementes do terceiro milênio

Edição IV | 01 - Jan . 2000
James Delouche-JCDelouche@aol.com
   Estamos entrando no terceiro milênio. Esta será uma ocasião alegre e festiva para muitas pessoas, porém é também uma época de apreensão e temor. O problema do “Bug do Milênio” que afetou muitos computadores tem sido abordado pela mídia nos últimos anos. Atualmente, quase todos os dias são publicadas nos jornais declarações de vários escalões dos governos de que o problema está sob controle na grande parte dos setores críticos, na maioria dos países. Porém, eles ainda aconselham a manter como precaução um estoque de água, comida enlatada, dinheiro e combustível.
   Sou uma pessoa prudente, e assim como foi aconselhado, incluí alguns itens em nossos estoques. Em primeiro lugar, estoquei um pouco de champanhe e vinhos para manter alegre nosso espírito, se alguns problemas inesperados surgirem e, em segundo lugar, sendo quem sou, também fiz um estoque de sementes das minhas cultivares preferidas dos mais importantes cultivos, para o caso dos problemas causados pelo “Bug do Milênio” retrocederem a civilização alguns séculos, como certas pessoas já previram.

   "Testes de sanidade e vigor serão rotineiros."   
 
   Observando meu estoque de sementes, minha mulher obrigou-se a me repreender: “Você está realmente preocupado, não é? Você não acredita que essa coisa de “Bug do Milênio” esteja sob controle. Por que, então, não junta alguns cachorros, gatos e alguns cavalos e começa a construir uma arca de Noé! Você está sendo muito tolo com relação a esse fenômeno e, devo dizer, também muito arrogante. Por que achar que você sabe que tipo de sementes serão necessárias e utilizadas no próximo milênio?” Optando por não desafiá-la (baseado em muita experiência pessoal), respondi: “Querida esposa, suas observações são sábias, como sempre, e suas perguntas são pertinentes e também exigentes. Confesso que não estou preparado para responder no momento, mas vou imediatamente para meu escritório para pensar mais a respeito deste assunto, assim como sobre o terceiro milênio e preparar uma racionalização para sua consideração e crítica.

     Alguns pensamentos e reflexões sobre sementes no terceiro milênio
   Primeiro, o horizonte considerado deve ser diminuído. Um milênio é um tempo m
uito longo – 1.000 anos. Mesmo os mais astutos e confiantes futurólogos não tentariam fazer uma previsão para um período tão grande. Um horizonte de 100 anos, ou melhor ainda, uma previsão para 25 anos é possível e não muito arriscada. Assim, o próximo milênio tornase o período entre os anos 2.000 e 2.025.

     Forma e função
    O cultivo agrícola iniciou há mais de 10.000 anos com a descoberta pelo homem da função produtiva e propagativa das sementes. Sete mil anos depois (3.000 A.C.), quando foi iniciada a escrita por hieróglifos no Egito, a forma e função das sementes não tinham sido apreciavelmente modificadas. Como tinha sido desde o início, juntavam alguns dos grãos e os reservavam para semear o próximo cultivo com a expectativa de que produziriam de maneira igual. Três mil anos mais tarde, quando Jesus Cristo esteve entre nós e a grande muralha da China estava sendo construída, os agricultores plantavam da maneira que faziam quando estas sementes foram primeiramente introduzidas.
   Há quatrocentos ou quinhentos anos atrás, quando os europeus navegaram para fora de sua terra natal para colonizar as Américas, sementes de cultivos de importância em seus países estavam entre seus itens prioritários em todas as cargas de navio. Atualmente, em muitos países, os produtores ainda guardam um pouco dos grãos e sementes que colheram para utilizar no próximo plantio, da mesma forma que têm feito nos últimos 12 ou mais milênios. Parece agora, contudo, que o desenvolvimento tecnológico resultará, lá pelo ano 2025 – nosso horizonte para o próximo milênio –, no desaparecimento da longa tradição de guardar sementes.
     Fora a morte da tradição de guardar sementes, não faço previsões de quaisquer mudanças substanciais na forma básica e na função das sementes das plantas cultivadas, ou qualquer tipo de sementes, durante os próximos 25 anos. As sementes evoluíram em muitos, muitos milênios, para um prodígio de miniaturização, uma das formas de vida mais resistentes e duráveis, e um meio de propagação altamente eficiente. No final da década de 80, fiquei muito entusiasmado com sementes artificiais e pensei que elas começariam a ser comercializadas antes do ano 2.000, o que seria o momento atual. Sementes sintéticas certamente representariam um abandono substancial da forma “natural” da semente, porém elas não tem sido significativamente comercializadas. Não vejo um grande e significativo futuro para as sementes sintéticas a curto e médio prazos, digamos até 2010. Se alguns dos problemas técnicos críticos forem solucionados durante os próximos dez anos, as sementes sinté- ticas poderiam ressurgir para um papel importante na agricultura.
     Enquanto haverá pequena mudança na forma e função essencial das sementes usadas para propagação das culturas nos primeiros anos deste terceiro milênio, as mudanças revolucionárias que temos testemunhado durante as últimas décadas continuarão com muitas modificações adicionais que estão por vir. As mudanças mais revolucionárias têm sido e e continuarão sendo nas áreas de direitos de propriedade para cultivares de plantas e caracteres genéticos, engenharia genética de cultivares, a organização e estrutura da indústria de sementes, o papel do produtor de sementes, os direitos dos agricultores e consumidores, e a total exploração das sementes como um sistema de distribuição para caracteres genéticos, substâncias químicas fito-ativas, e outros aditivos.

     Jardins virtuais no ciberespaço
   Apesar da espantosa capacidade dos computadores e da certeza de que novidades estão por vir, não acredito que necessitemos nos preocupar com jardins, campos e prados virtuais no ciberespaço, que um dos meus amigos adolescentes assegura- me, irão substituir todo o trabalho de preparo do solo, semeadura, fertilização, irrigação e capina que realizo no meu jardim e gramado. Embora seja profundamente ignorante quanto ao mundo digital, tenho confiança de que enquanto um jardim virtual possa ser esteticamente agradável, eu não vou produzir uma saborosa salada ou um bouquet que possa ser carregado e tenha textura, e que eu possa dar para minha esposa. Assim, não precisamos nos preocupar com a possibilidade de que sementes, jardins, campos e pradarias virtuais vão substituir a magnificência concedida pela natureza.

     Sementes: o principal sistema de distribuição
   Sementes constituem-se em um sistema de distribuição muito eficiente. Os primeiros agricultores utilizavam sementes provenientes de um cultivo maduro e já senescente para “distribuir” uma nova geração de plantas na estação seguinte. Mais tarde, os agricultores aprenderam a selecionar nas, plantas diferentes, com atributos desejáveis, a coletálas e guardar suas sementes para distribuir as variações desejadas nas plantações seguintes. Com o advento do melhoramento vegetal científico, no início deste século, os melhoristas fizeram um levantamento da variabilidade para atributos e propriedades em populações de espécies, reuniram e incorporaram caracteres superiores para melhorar populações e usavam as sementes para distribuir “pacotes” de melhorias, isto é, cultivares melhoradas, nos sistemas de cultivo agrícola da área. Heterose ou vigor híbrido é um exemplo de um caráter muito importante distribuído pelas sementes.

    
    "Sementes tratadas com produtos químicos serão cada vez mais utilizadas."
 
    A descrição da estrutura do DNA em 1954, por Watson e Crick, e os fundamentos subseqüentes da biologia molecular abriram caminhos para melhorias nas formas de vida, incluindo plantas que são espantosas e perturbadoras. Melhoristas de plantas não são mais limitados ao pool de variação existente em uma população de espécies em seu trabalho de melhoramento vegetal. Por mais de uma década, melhoristas e biólogos moleculares têm usado técnicas de genética recombinante e engenharia genética para transferir genes específicos de espécies não aparentadas, como por exemplo, espécies de bactéria, para plantas cultivadas, com o objetivo de incorporar e estabelecer caracteres altamente desejáveis, tais como resistência a insetos, resistência a um herbicida de amplo espectro, maior vida na prateleira e assim por diante. Estes valiosos caracteres são agora distribuídos por meio das sementes de cultivares transgênicas para espécies cultivadas em milhões de hectares. Muitas outras cultivares com caracteres ainda mais interessantes estão sendo testados.

     As novas sementes

   Cultivares transgênicas são criadas e não apenas desenvolvidas como o são as cultivares de melhoramento convencional. Sementes transgênicas, embora familiares na aparência e quanto à função básica, são verdadeiramente “novas sementes”. Elas produzem plantas com caracteres que não aparecem durante a evolu- ção das espécies. Apesar das possibilidades para melhoramento das cultivares através da engenharia genética não serem ilimitadas, como alguns asseguram, elas estão muito além das possibilidades do melhoramento convencional. Para os produtores e usuários de sementes e os consumidores de produtos agrícolas, esta deveria ser a melhor época, mas não é... Existe uma reação quase mundial contra produtos não rotulados de organismos geneticamente modificados (OGMs) e/ou mesmo aqueles que são rotulados. As conseqüências desta reação são ira e incerteza dos agricultores que precisam decidir entre plantar cultivares geneticamente modificados ou normais; apreensão, explicações tardias e promessas dos produtores e proprietários de cultivares geneticamente modificadas; satisfação e determinação dos grupos de interesse especial que lideram a reação; e medo e incerteza dos consumidores.
     As dificuldades atuais e a confrontação podem ser atribuídas em grande parte à colisão entre dois interesses. De um lado, os interesses normais e legítimos dos criadores e proprietários de variedades transgênicas com, infelizmente, muito pouca atenção às relações públicas e mais arrogância do que o desejável. E, de outra parte, os interesses dos grupos especiais de segurança ambiental e de alimentos, grupos de retorno à natureza e grupos afins, para contestar qualquer evento, situação ou desenvolvimento que possam causar impactos à situação bio-ecológica vigente.
    Há pessoas e argumentos bons, sérios e importantes em ambos os lados. Os produtores e proprietários de variedades geneticamente modificadas precisam diminuir o fluxo de materiais, de forma a permitir mais e mais extensos testes de segurança, melhor e mais ampla publicidade dos resultados dos testes, e relações públicas mais amistosas. Eles precisam explicar e demonstrar como as novas tecnologias de engenharia genética podem ser um poderoso meio de estabelecer segurança dos alimentos e superar a fome, desnutrição e pobreza no meio rural, reduzindo a dependência em pesticidas químicos e criando muito mais oportunidades para sistemas de cultivo sustentável. Poderiam considerar o acordo sobre as exigências de rotulagem para produtos de OGMs. Os grupos de interesse especial necessitam adotar posições mais razoáveis e menos doutrinárias, moderar suas demonstrações, educar seus seguidores, e reconhecer que fornecer segurança de alimentos para uma população mundial crescente requer cautela, porém total exploração de cada avanço científico.
   É provável que a confusão presente vá aumentar e mesmo haver mais confrontos, mas não tenho dúvidas de que a razão vai prevalecer e que os problemas atuais serão satisfatoriamente resolvidos dentro dos próximos anos. É possível prever que: - a segurança da maioria dos produtos de cultivares geneticamente modificadas será conclusivamente demonstrada. Procedimentos rigorosos para identificar produções sem segurança ou arriscadas e para estabelecer a segurança dos produtos em um estágio inicial estarão solidamente assegurados e postos em operação. Uma variedade de produtos muito nutritivos e saborosos, derivados de OGMs, sem traços de resíduos de defensivos, estará disponível aos consumidores a preços acessíveis.
 
    “As sementes transgênicas serão viáveis e poderão ser ressemeadas, porém, as plantas produzidas não terão os caracteres desejáveis.”

    Agricultores usuários de sementes
    Os agricultores usuários de sementes provavelmente irão experimentar as mudanças mais traumáticas com relação a sementes no próximo milênio. Deles já é cobrado o custo da tecnologia em adição ao preço da semente de cultivares geneticamente modificadas, devendo firmar acordos para utilizar certas práticas, não replantar as sementes, e permitir inspeções para verificar se os acordos estão sendo honrados. A mais traumática mudança no uso das sementes pelo agricultor em nosso período de previsão (até 2025) será a morte final da tradição de guardar sementes para a maioria dos cultivos comerciais. Isto será realizado pela indústria de sementes global, não por meio de acordos de compra e inspeções, mas sim por meio da tecnologia. Vários sistemas genéticos e procedimentos serão utilizados para desligar ou desativar os caracteres críticos em sementes produzidas por OGMs. As sementes serão viáveis e poderão ser ressemeadas, porém as plantas produzidas não terão os caracteres transgênicos desejáveis.
     Este será um sistema de proteção de tecnologia mais aceitável do que o muito discutido chamado sistema do gene terminator.

     Análise de sementes, tratamentos e aditivos
    No terceiro milênio, a maioria das sementes será submetida a testes de sanidade e vigor em adição a usual bateria de testes. A maior parte dos testes e dos procedimentos para garantia de qualidade será realizada pelas companhias de sementes sob a certificação ISO, com limitadas inspeções do governo para verificações. A maioria das sementes serão tratadas com substâncias químicas ou com tipos diferentes de radiação para eliminar patógenos presentes, priming ou osmocondicionamento para acelerar e sincronizar a germinação e aumentar a resistência aos estresses ambientais, e revestidas para melhorar a semeadura. Serão adicionados micronutrientes e fito-hormônios ao revestimento, como necessário ou desejado por agricultores individuais.

     Resultados das reflexões e meditações sobre as sementes do próximo milênio

   Concluí minhas reflexões e pensamentos, muito satisfeito, digitei-os no computador, fiz uma cópia e, confiante, a entreguei para minha esposa. Algumas horas depois, ela confrontou-me no jardim com a folha de papel na mão. “Você merece crédito por alguns pensamentos profundos, mas suas reflexões não são dirigidas à questão do porque você sente que sabe quais espécies de sementes serão necessárias e utilizadas no terceiro milênio. Elas são especulativas, muito prolixas, e ainda introduzem a questão adicional de sua qualificação para fazer prognósticos”. Devolvendo a folha, ela disse, “Melhor pensar um pouco mais sobre isto”. Respondi: “Sim, querida”, e voltei rapidamente para o escritório para procurar no dicionário a definição de prognóstico.  

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