Protegendo a Propriedade

Edição X | 04 - Jul . 2006
Silmar Teichert Peske-silmar@seednews.inf.br
   A matéria central desta edição da SEED News trata de um dos sustentáculos do negócio sementes, ou seja, a proteção intelectual dos processos que geram e desenvolvem novas e melhores variedades e/ou híbridos. Para isso, serviram de base os seminários da International Seed Federation sobre o assunto, realizados em Berlim em 2004 e em Copenhagen em 2006. 
                   
   Porque proteger?                     
   São várias as razões que justificam a obtenção de mais e melhores alimentos ou fibras, a um preço adequado, e todas elas passam pela necessidade de inovação e pela lei natural do comércio, que é a competição. Estas são os motores do crescimento econômico e social que nos propiciam uma qualidade de vida melhor que dos nossos antepassados e ainda melhor  para nossos filhos, mais afortunados do que nós.
   A grande maioria das invenções falham e os investimentos feitos nestas invenções fracassadas significam prejuízos. Assim, inovações bem sucedidas devem ser compensadas, caso contrário os investimentos em novas tecnologias serão cada vez mais incipientes. Para evitar isso, a competição deve ser moderadamente limitada. Assim, o sistema de proteção a ser utilizado deve ter um equilíbrio entre inovação e imitação, e entre exclusividade e competição. A dificuldade é encontrar o adequado equilíbrio.                
   A obtenção de sementes com alto desempenho envolve várias e críticas decisões de negócio, em que o longo e complexo caminho do germoplasma até a semente que o agricultor irá utilizar, inclui os seguintes passos: 
 1.Priorização de investimentos a longo prazo em capacidade de pesquisa e desenvolvimento de mercado; 
 2.Alocação de recursos para projetos de pesquisa que possuam um maior potencial de sucesso; 
 3.Desenvolvimento da variedade ou híbrido com características especiais. Esta fase é a mais crítica e demorada; 
 4.Produção de sementes comerciais mantendo a qualidade genética e de alta qualidade fisiológica e sanitária; 
 5.Marketing e venda das sementes aos agricultores. Materiais com desempenho mediano terão dificuldades de venda, pois os agricultores buscam materiais de alta produtividade e que propiciem bom retorno de seus investimentos. 
                   
   Desta maneira, a obtenção de um lucro condizente com os esforços em pesquisa e desenvolvimento irá perpetuar este ciclo via reinvestimento em germoplasma e tecnologias de processos. Variedade e híbridos comerciais não ocorrem por acaso. Esquemas inovativos de seleção de plantas e várias ferramentas científicas de pesquisa são requisitos obrigatórios.  A globalização do comércio fez com que os países adotassem mecanismos de proteção intelectual para plantas, de acordo com o tratado conhecido como TRIPS (Trade Related Aspects of International Property Rights). Atualmente, mais de sessenta países possuem algum tipo de proteção, sendo que em países desenvolvidos, onde a competição é maior, os mecanismos de proteção são mais fortes.                    
   Em países em que a proteção de plantas é fraca ou inexistente, pode-se considerar que não existirão materiais de primeira linha, ou a demora em tê-las será bastante grande. Exemplificando, a empresa Monsanto desenvolveu uma variedade de soja com alto conteúdo de óleo bom para a saúde e está comercializando-a em países em que a proteção de variedade é robusta.


   

   Assim, países que não possuem esta proteção não terão acesso a este tipo de material. A consequência é que, preço por preço, o mercado vai preferir grãos de soja que sejam mais saudáveis, em detrimento dos outros. Como resultado, aquele país que não tiver  um adequado sistema de proteção de variedade estará marginalizado comercialmente. 
               
    Como proteger?                   
    Há várias formas de proteção comercial, seja através de um processo de obtenção de  determinado material, que pode ser uma variedade ou de um evento específico, introduzido numa variedade. A proteção de uma variedade é comumente realizada através da convenção da Organização Internacional para Proteção de Cultivares (UPOV), seguindo as diretrizes estabelecidas pela convenção de 1991. Nos EUA os materiais de propagação assexuada (frutíferas em geral) podem ser patenteados desde o início do século XX. Por outro lado, a proteção de um processo ou de um evento através de patente é utilizada praticamente no mundo inteiro. Também há a proteção para segredos comerciais, muito utilizada para as linhas puras de híbridos e para marca registrada que identifica, normalmente, uma classe de produto.                 
    Analisando a robustez de uma destas formas de proteção, a patente é a melhor, entretanto pode ser polêmica em alguns aspectos. Isso tem feito com que a proteção  através das convenções da UPOV também sejam muito utilizadas. A seguir, vamos  detalhar as principais características de cada forma de proteção.
                 
    Convenções da UPOV                 
    São duas as convenções em que os materiais podem ser protegidos: a de 1978 e a de 1991, respectivamente. Em ambas as convenções, um material para ser protegido necessita possuir três características essenciais, quais sejam: ser diferente, estável e homogêneo. A convenção de 1978, na qual os países da América do Sul são signatários, contempla a proteção até a semente, ou seja, o agricultor que comprar sementes de uma variedade protegida poderá guardar parte de sua colheita para semeadura na safra seguinte. Este é o grande inconveniente desta convenção. Por outro lado, a convenção da UPOV de 1991 contempla a proteção da variedade até o material colhido como grão, ou seja, se o agricultor desejar guardar parte de sua colheita para semeadura da próxima safra deverá pagar o royalty assim mesmo, ou seja, pagar pelos direitos dos melhoristas, o qual normalmente oscila ao redor de 5% do valor da semente.                   
    Um aspecto importante da convenção da UPOV é que todo país que tiver um material  protegido pela organização terá reciprocidade em outro país, o que facilita o intercâmbio.  Atualmente, são mais de 60 os países filiados à UPOV. Hoje, para um país se tornar membro,  terá de adotar a convenção de 1991. Espera-se um aumento significativo no número de países  filiados a UPOV, signatários da convenção de 1991, especialmente face à tendência de que  países signatários da convenção de 1978 passem a utilizar a de 1991.                   
    Outro aspecto da convenção da UPOV é a exceção concedida ao melhorista, ou seja, a  de que ele pode entrar em um campo de produção de uma variedade recém lançada e colher amostras para seu programa de melhoramento. Entretanto, a lei contempla que toda variedade, para ser protegida, deverá ser diferente, e essa diferença deverá ser de uma magnitude e de algum valor, caso contrário, será considerada essencialmente derivada e sua utilização somente ocorrerá com a licença do obtentor inicial da variedade.               
   Em relação a uma variedade essencialmente derivada, há uma incerteza quanto ao grau de similaridade a ser utilizado no divisor, entretanto, parece que há um consenso de  que sejam utilizados marcadores moleculares em número de 100 a 200. Caso a semelhança  seja superior a 90%, o material será considerado essencialmente derivado. Recentemente, surgiu na Europa um caso de cultivar de trigo essencialmente derivada. Isso fez as partes envolvidas, entre elas a UPOV e a ISF, trabalharem em ritmo acelerado para definição adequada desta característica.               
    Para a obtenção de uma nova variedade, o melhorista necessita ter acesso a um banco  de variabilidade genética. Esta necessidade serviu de base para que na convenção da UPOV fosse conferido ao melhorista livre acesso aos campos de produção, pois o melhoramento é obtido aumentando o desempenho das variedades através de composições e combinações de gens favoráveis. No entanto, há um consenso de que haja um equilíbrio entre o acesso e a  proteção, pois há o risco da paralisação do avanço genético ou a criação de monopólios - ambas situações indesejáveis.    
             
    Patentes                   
    Devemos entender como patente a propriedade de cunho financeiro, com validade  temporal, territorial e alienável, por isso a proteção por meio de patentes é a mais forte e  pode ser obtida desde que o material seja inovador, tenha aplicação industrial e não seja  óbvio. A inovação deve ser de alguma forma original, ou seja, desconhecida e não usada  anteriormente. A aplicação industrial significa que deva ter utilidade, entretanto alguns países  possuem uma interpretação mais ampla, envolvendo aspectos técnicos. Uma patente também deve ser mais do que um processo natural ou rotineiro ou um desenvolvimento inevitável de algo já conhecido. Um requerimento importante para patentear é o da demonstração. A ideia fundamental do sistema de patente é que o inventor explique, em seu pedido de patente, como obter e usar a inovação para receber, em troca, uma proteção temporária. No caso de plantas e de processos para obter determinado desempenho ou função, utiliza-se a semente como depósito. Neste tipo de proteção, o mais importante é a especificidade do que se está protegendo, não pode ser muito ampla e nem específica demais.                 
    Em relação à amplitude, há o inconveniente de que na análise o pedido seja interpretado como ganância e, em relação a especificidade, há o inconveniente de não ocorrer uma proteção adequada. A forma de se pedir a proteção é a chave do sucesso, envolvendo aspectos técnico-científicos, jurídicos e comerciais. A patente não é uma garantia de qualidade, endosso oficial da tecnologia, ou um selo ético de aprovação ou desaprovação.               
    A patente de uma variedade não é permitida em vários países, incluindo o Brasil (nos EUA é permitida) com a justificativa de que é essencialmente um processo biológico ou, em  outras palavras, organismos vivos não podem ser patenteados. Por outro lado, processos para  obter uma variedade com funções específicas são patenteáveis, como um conjunto de gens  que propiciam a formação de maior quantidade de ácido oleico numa variedade de soja.  Uma variedade pode conter várias patentes, como o mecanismo de introdução de gen, tipo de transformação, inibidor, vetor, marcador molecular, tecnologia de seleção, silenciador de gen, entre outros. O conhecido arroz de ouro possui mais de 70 patentes e a soja RR mais de 10. Isto quer dizer que um material, para ser comercializado nestas condições, deverá ter a  permissão por meio de um pool de patentes.                
    Comentamos anteriormente que a patente é o sistema mais forte de proteção, e isso se deve a dois fatores: o primeiro é em relação à semente salva pelo agricultor, que no sistema  de patentes, deverá pagar os devidos royalties ao obtentor, e o segundo relaciona-se à isenção  do melhorista, que no sistema de patentes não possui o privilégio de utilizar o material protegido em seu programa de melhoramento. Também é merecedor de registro o consenso  entre os interessados de que os avanços na área biotecnológica, que auxiliam de alguma  forma o desempenho de uma variedade, são patenteáveis. Isto inclui a caracterização de gen  e sua respectiva função. Outro aspecto é que híbridos podem ser patenteáveis, bem como  suas linhas parentais, desde que sejam usadas exclusivamente para obtenção de híbridos.                
    Podemos ter a proteção da UPOV e de patente num mesmo material. A variedade é  protegida normalmente de acordo com os requisitos da UPOV, enquanto o evento, fazendo com que a variedade seja resistente ao ataque de um inseto, é protegido pela patente. Assim, para esse material ser comercializado, as partes obtentoras de proteção devem possuir um acordo.  
               
    O examinador                   
    Como pode ser observado, o processo de patenteamento envolve a necessidade de  conhecimentos técnico-científicos, fazendo com que nos EUA e Europa principalmente os  examinadores dos pedidos de patente tenham formação específica, sendo portadores do título  de doutor. Como exemplo, podemos citar a visita a um escritório de patenteamento  relacionado com plantas, no qual o examinador possui doutorado em biologia molecular.  A qualificação profissional é essencial num sistema tão importante que envolve aspectos  sociais e comerciais. Cada país utiliza o que melhor lhe convier em termos de proteção,  entretanto, todos necessitam de pessoal capacitado para analisar a pertinência de um  pedido de proteção. 
                 
    Implementação               
    Os sistemas de proteção de plantas envolvem a cobrança de royalties, quer seja da  variedade, através de lei de proteção de cultivares, utilizando convenção da UPOV, ou  de um evento (processos), através da lei de patentes. Vejamos o exemplo do Brasil, onde  se está utilizando a lei de proteção de cultivares baseada na convenção da UPOV de 1978, a  qual prevê a cobrança de royalties pelo uso das sementes de variedades protegidas. Por  esta razão, o setor sementeiro está passando por dificuldades, em decorrência de royalties  sobre as sementes. Por outro lado, os royalties referentes às patentes da soja RR foram  recebidos quase na totalidade, alcançando 98% do estimado.                
   A diferença está na implementação, pois a patente faculta ao obtentor recolher seus royalties até na indústria ou, como no Brasil, no momento em que o agricultor entrega seu grão para venda. O controle e fiscalização por órgãos competentes são muito importantes, para fazer com que a pirataria seja minimizada; por outro lado, se todos pagassem, o valor do royalty incidente sobre o grão poderia ser reduzido, trazendo vantagens econômicas tanto para o obtentor como para o agricultor.

   


    Situação no Brasil                 
    O Brasil possui sua lei de proteção de cultivares baseado na convenção da UPOV de  1978, em que a proteção da variedade vai somente até a semente. O agricultor pode  salvar sua própria semente mesmo de uma variedade protegida, independente da área que  cultive. Isso está causando um grande inconveniente para o negócio semente e a agricultura em geral, pois os novos materiais estão demorando muito para serem lançados. Com isso todos perdem.               
    Em relação a patentes, o país não permite que organismos vivos sejam patenteados, incluindo entre eles as variedades, permitindo, entretanto, patentear os processos que  levam a criação e o desenvolvimento de novas variedades. Atualmente, está em exploração comercial uma importante patente, envolvendo um pool de patentes, que é a da soja RR. A cobrança de royalties na soja RR é, em termos gerais, 2% sobre o grão produzido, cobrado no  momento da entrega do produto para venda. Esta operação já está funcionando há dois anos, envolvendo o agricultor, o produtor de sementes, o cerealista, o obtentor e uma agência de controle externo. O recolhimento dos royalties é superior a 95% do estimado.   
             
    Soja resistente à Ferrugem Asiática             
   Os programas de melhoramento no mundo inteiro estão trabalhando freneticamente para desenvolverem variedades resistentes à ferrugem asiática, que somente no Brasil causou no ano agrícola de 2005/06 mais de um bilhão de dólares de prejuízo. Nos países onde não é  possível patentear uma variedade, a proteção conferida pela convenção da UPOV será  insuficiente para garantir retorno econômico ao obtentor de tão importante êxito, devido  principalmente a dois fatores: como mencionado anteriormente, o direito facultado ao agricultor de salvar sua própria semente e a isenção do melhorista, que em pouco tempo, com as ferramentas da atualidade, poderá ter uma variedade com a mesma característica, sem pagar nada a ninguém. Isto deve servir para reflexão, pois num mundo globalizado,  como o nosso, o menos preparado, com certeza, terá mais dificuldades de evoluir.       


   
    
    Algumas situações para reflexão                
   Proteger algo que possuímos se constitui em mecanismo auxiliar para a obtenção de  uma melhor qualidade de vida. Ao consideramos satisfatório o sistema atual de proteção de cultivares existente no Brasil, não significa que ele não seja sujeito a mudanças, pois avanços podem ser obtidos em algo que esteja funcionando bem. Assim sendo, nos atrevemos a chamar a atenção dos leitores para alguma situações:
1. Igualdade de proteção para materiais provenientes de banco de germoplasma ou  através de processos biotecnológicos – Uma variedade de elite possui uma combinação  adequada de gens que é muito difícil de se conseguir, especialmente em razão do elevadíssimo número de gens que uma determinada espécie possui. Assim, quando se consegue esta combinação, deve-se proteger o material para que outros não usufruam de nossos esforços. Escutamos de um palestrante que, num jogo de cartas - mais especificamente, o pooker - a chance de se ter um Royal (cinco cartas em sequência de um mesmo naipe, do 10 até o ás) num baralho de 52 cartas, é de uma chance em mais de 100.000. Assim, imaginem a chance de se ter uma variedade de elite com um número grande de gens;               
2.Igualdade de proteção para espécies autógamas e para híbridos - Os híbridos já  possuem uma proteção natural e, além disso, são passíveis de serem patenteados, enquanto  as variedades não são patenteáveis na maioria dos países. As injustiças fazem com que outras  alternativas sejam buscadas e muitas vezes os resultados são imprevisíveis;              
3.Equilíbrio entre proteção varietal e acesso a germoplasma - Para o avanço na obtenção de materiais-elite há necessidade de acesso a bancos com variabilidade genética. Isso pode coexistir de forma aberta, envolvendo a participação dos países com centro de origem de germoplasma, nos benefícios oriundos da utilização dos novos materiais;             
4.Conduta e proteção - Aspectos éticos e código de conduta podem não ter valor  num processo legal, entretanto podem ser a força política que a indústria sementeira  necessita. Cada país é soberano para escolher o seu rumo;             
5.Profissionais capacitados na área técnico-científica – A proteção é muito importante  para ser tratada apenas pelos departamentos de propriedade intelectual, que muitas vezes  se detém apenas aos aspectos legais dos processos. A proteção intelectual em plantas é muito mais do que isto;             
6. Globalização - Podemos ter empresas de sementes locais, regionais, nacionais ou  transnacionais, todas elas atuando, de certa forma, sincronizadas para fornecer ao agricultor,  uma semente superior. Caso essa cadeia se rompa, o agricultor deixará de utilizar o que  houver de melhor e com isso perderá competitividade num mundo globalizado e não  haverá subsídios que resolvam a situação. Sabe-se que reservas de mercado levam ao atraso. 
                       
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