A tarefa de negociar em tempos de direitos do obtentor

Edição XI | 01 - Jan . 2007
Miguel Angel Rapela-rapela.miguel@gmail.com
          As dificuldades para uma efetiva proteção da propriedade intelectual relacionada com a obtenção de novas variedades vegetais, as invenções biotecnológicas e a inter-relação entre ambas, são temas comuns em toda parte. Dois recentes artigos publicados na revista SEED News acabam de abordar o assunto, desde a perspectiva particular do Brasil, Bolívia e, em geral, da região.
        A Argentina, que conta com uma indústria sementeira importante, aceitou a biotecnologia aplicada a cultivos extensivos com a taxa mais alta do mundo, e supôs ser pioneira na promulgação de uma lei na matéria; mostra, entretanto, um sistema pouco efetivo de propriedade intelectual para a proteção de obtenções vegetais. Isto poderia ser produto tanto do anacronismo legislativo, como de uma falta de vontade, e/ou capacidade gerencial para a resolução de conflitos.
       Conscientes disto, três empresas sementeiras nacionais argentinas do tipo familiar, as quais, somadas, acumulam 210 anos de trabalho em melhoramento vegetal, uniram-se para reerguer o Fontar (Fundo Tecnológico Argentino), apoio para um projeto integral de análise, diagnóstico e proposta de soluções. Os resultados foram apresentados recentemente. Dois são os aspectos a considerar para valorizar esta contribuição; em primeiro lugar pela primeira vez se abordou o tema sob a base de um enfoque multidisciplinar, e que se somaram esforços de engenheiros agrônomos, advogados, economistas e sociólogos. Em segundo lugar, aplicaram-se estratégias inovadoras para o tratamento do tema e isto é justamente o que se comenta a seguir.
 
           A Teoria de Jogos
         A Teoria de Jogos foi enunciada pelos matemáticos Von Neumann e Morgenstern e publicada em 1944 em um livro clássico (The Theory of Games and Economic Behavior). Destinada a ser um mero exercício intelectual, no início dos anos cinquenta, o matemático norte-americano John Nash (cuja incrível vida foi levada ao cinema no filme “Uma mente maravilhosa”), a converteu em uma ferramenta valiosa que teria importantes aplicações em economia, psicologia, sociologia e biologia. Nas situações habituais de conflitos de posições e interesses, os atores participantes buscam maximizar a utilidade elegendo determinados cursos de ação. Porém, como a utilidade de cada ator depende dos cursos de ação dos restantes, o conflito termina geralmente em alguma destas três formas:
• ganha o mais forte (ou que tenha mais capacidade de lobby, se preferir);
• se chega a uma solução que não serve a nenhum dos atores (todos perdem), ou;
• não se chega a nenhuma solução (também todos perdem). O desafio é, então, terminar em uma forma em que todos ganhem.
           A Teoria dos Jogos (Cooperativa) demonstra matematicamente que, em muitas situações, se os distintos atores cooperam entre si, o resultado para todos é melhor do que se os atores buscam de forma isolada maximizar sua própria utilidade. O aporte de John Nash demostrou a possibilidade de levar a um equilíbrio que sucede quando a escolha estratégica de cada ator é a resposta ótima às escolhas estratégicas dos outros atores. Neste ponto de equilíbrio, nenhum dos atores sente a tentação de trocar de estratégia já que, se o fizerem, implicará em uma diminuição em suas utilidades. Hoje se conhece isto como o Equilíbriode Nash, graças ao qual lhe foi concedido o Prêmio Nobel de Economia no ano de 1994.
          As situações de conflito entre diferentes atores dispõem quase sempre de um único Equilíbrio de Nash, ainda que se tenha demonstrado a existência de conflitos com vários Equilíbrios e de outros nos quais é impossível encontrá-lo. A pergunta sugerida no trabalho foi a seguinte:
         Seria possível encontrar um único Equilíbrio de Nash que satisfaça aos distintos atores participantes do conflito para implementar um efetivo sistema de proteção da propriedade intelectual sobre obtenções vegetais na Argentina?
 
          Os atores e a negociação
           Ainda que já tenham sido apontadas algumas razões pelas quais o conflito não tenha sido resolvido, o concreto é que estamos diante de um caso de alta complexidade, pela diversidade de atores envolvidos.

           Analisemos isto para o caso da Argentina.
a. O Governo: erroneamente chamado Estado, já que se assim fosse se teria uma média segurança da existência de uma política continuada no tempo. O governo é um ator do conflito de alta variabilidade de posição;
b. Os obtentores e inventores - hipercomplexo ator que envolve:
• O Estado e suas instituições de pesquisa e experimentação em melhoramento vegetal e biotecnologia (Inta, Conicet, Universidades) que liberam (e registram) variedades vegetais e desenvolvem (e patenteiam) invenções biotecnológicas;
• As empresas produtoras de sementes nacionais, entre aquelas do tipo familiar, cooperativo e sociedades propriamente ditas;
 • As empresas produtoras de sementes internacionais, quase todas por sua vez imersas em programas de biotecnologia de ponta.
c. Os multiplicadores de sementes: muitos e de diversa estrutura empresarial.
d. Os produtores e comerciantes de sementes: idem anterior.
e. Os agricultores. Outro grande ator, já que para o caso da Argentina está representado por quatro associações: Federação Agrária Argentina (FAA), Sociedade Rural Argentina (SRA), Confederação Intercooperativa Agropecuária (Coninagro), e Confederações Rurais Argentinas (CRA), que em muitos casos apresentam profundas divergências de posições.
 
         O que o estudo envolveu
          Primeiro caso: Identificar e analisar o problema, não confundindo os diferentes atores com o problema. As declarações altissonantes, prejuízos, etc, tendem a confundir os atores com o problema propriamente dito. De tal forma, a identificação clara do problema e sua análise objetiva é de primordial importância. Para o caso argentino, ademais, existia a percepção - muito equivocada como demonstrou o estado - que o problema se restringia à cobrança de royalties, em uma confusão entre causa e efeito.
          Desta maneira, uma considerável parte do estudo levou a este primeiro caso, analisando-se no mesmo quem são os atores afetados, quem são aqueles potencialmente beneficiados frente a uma troca e quem são aqueles menos prejudicados se não houver troca. Realizou-se uma análise econômica do conflito, buscando apurar quem são e quanto é o que se está perdendo (ou deixando de ganhar). Analisou-se exaustivamente a relação entre os obtentores e usuários no que concerne à exceção do agricultor ou uso próprio, a relação entre obtentores entre si, e a relação entre obtentores e inventores de desenvolvimentos biotecnológicos, no que concerne à exceção ao fito melhorador. Aprofundou-se o estudo dos vazios de proteção e foi analisado o conflitivo marco do esgotamento do direito, licenças e captura de valor.
           Segundo caso: Identificar e analisar os interesses dos atores e não suas posições. Ao analisar o complexo cenário de atores já descrito, era facilmente apreciável uma profusa e profunda diversidade de posições. Entretanto, ao analisar os interesses dos atores, foi possível identificar um número não depreciável de concordâncias, tal como assinala a teoria na qual se baseia o sistema.
          
  Atores envolvidos nas negociações para elaboração da lei de proteção das obtenções vegetais

         Para determinar os interesses explícitos e não explícitos do governo, os  obtentores inventores, multiplicadores de sementes, comerciantes e  usuários, levaram a  cabo entrevistas antes e durante as diversas etapas da pesquisa. Foi possível determinar fundamentalmente os interesses comuns que não deixam de surpreender;
 • existe um problema;
• tem que se solucionar o problema;
• se não se soluciona o problema perdemos todos;
• a propriedade intelectual tem que ser honrada e respeitada;
• o uso da tecnologia tem que ser pago, e;
• existem certos setores que por diversas circunstâncias e características devem estar clara e especificamente beneficiados por uma exceção ao direito de propriedade.

          Terceiro caso: propor tantos cursos de ação como seja possível a fim de maximizar os interesses comuns dos distintos atores. A princípio, este pode ter sido considerado um caso de relativa simplicidade. Por que não deveria existir um modelo de proteção no mundo, que se ajustasse às necessidades da Argentina? Sem dúvida, a resposta foi negativa; por um lado os Estados Unidos compartilham uma indústria produtora de sementes sumamente parecida à da Argentina, enquanto a existência de ambos e consolidados programas de pesquisa, participação privada e pública, significativo desenvolvimento biotecnológico e ampla
aceitação comercial deste tipo de produtos.
          Porém, seu sistema legal é diametralmente oposto. Nos Estados Unidos se aplicam patentes sobre variedades vegetais, os sistemas de  contratos estão amplamente aceitos  como forma usual de relação comercial, as decisões dos tribunais têm avaliado todo o pactuado e as licenças cruzadas são o meio idôneo para as relações entre os geradores de tecnologia.
          Por outro lado, a Argentina tem com a União Europeia uma similaridade na base legal de proteção aceita, isto é, sistemas de direito do obtentor derivados das Atas da UPOV e não aceitação de patentes sobre variedades vegetais. Entretanto, na União Europeia, a biotecnologia comercial é praticamente inexistente e, por isso, é nula a experiência que podemos tirar desta fonte.
          Finalmente, em nível de América Latina, vários países têm adotado recentemente novas leis para a proteção de obtenções vegetais Tudo isso em seu conjunto foi analisado e as potenciais vantagens e desvantagens de cada solução postas em equilíbrio.

          Quarto caso: propor um modelo factível de análise objetiva. Este último caso é todo baseado no anterior. Elaborou-se uma proposta de projeto de lei de proteção de obtenções vegetais, de acordo com a lei de patentes vigente, o tratado ADPIC, as Atas da UPOV e os códigos de fundo.

          Os desafios
           O projeto em si propõe dois desafios. O primeiro é dos autores do projeto até os distintos atores:
• Poderão demonstrar que a solução proposta é o único Equilíbrio de Nash existente neste conflito e conseguir que os atores percebam que sua escolha estratégica é a resposta ótima às escolhas estratégicas dos outros atores, ao mesmo tempo em que não sintam a tentação de trocar de estratégia já que qualquer troca implicaria em uma diminuição em suas utilidades?
           E, o segundo desafio é justamente em direção oposta, é a respeito dos distintos atores aos autores:
• Se o anterior é negativo, poderão propor um novo modelo de projeto com um Equilíbrio de Nash que supere o planejado no projeto original? (o qual é crucial na teoria, já que, se não podem, este projeto é, por defeito, o curso a eleger).
           Tendo em vista que o avanço científico não se dá por meio de certezas, senão pela promulgação de hipóteses superadoras, uma resposta positiva ao primeiro desafio seria um passo transcendente, porém, muito mais, seria dar uma resposta ao segundo. Por essas razões, os autores entendem que o estudo em seu conjunto, e o projeto legislativo, em particular, constituirão um aporte de utilidade para a República Argentina e, provavelmente, para toda a região.
  
          Os grandes pontos de equilíbrio do projeto são:
1. Lei de patentes (eventos) x direitos do obtentor (germoplasma)
2. Direitos dos pequenos agricultores x obrigações dos restantes
3. Concessão do título por parte do estado x controle do exercício do direito por parte dos obtentores
4. Exceção à investigação x variedade essencialmente derivada
5. Autorizações comerciais expedidas entre inventores e obtentores
 
         
Resumo
           Para gerar uma proposta de  solução ao problema da proteção intelectual das  obtenções vegetais na Argentina, desenvolveu-se um trabalho interdisciplinar de análise e diagnóstico, englobando todos os pontos em conflito. A proposta de solução é um inovador projeto de lei baseado em um equilíbrio de escolha estratégica entre os diferentes atores envolvidos, seus interesses e o marco legal.
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