Aparência, percepções e realidade

Edição VII | 06 - Nov . 2003
James Delouche-JCDelouche@aol.com
    As coisas não são sempre como aparentam ser. Talvez seja esta a razão de os chamados reality shows estarem entre os programas de televisão mais populares. Esses programas dizem apresentar vinhetas da “vida” como elas realmente são e como ocorrem, e não da maneira usualmente fictícia dos demais dramas televisivos. O que se vê é real: aparência iguala-se à realidade.                   
    Descobertas e dados científicos são considerados como corretos, a menos que tenha havido alguma falha óbvia no planejamento experimental. Eles são realidade. A maioria das pessoas assume que se os dados são corretos, as conclusões neles baseadas também estão corretas. As conclusões, contudo, provêm da aparência que essas descobertas têm para os pesquisadores, as quais podem ou não corresponder à realidade.               Na ciência, diferenças entre aparência e realidade não são raras. Parece não haver como escapar da armadilha de coroar um conjunto de dados corretos com uma conclusão errada. Cientistas e tecnólogos de sementes, incluindo o autor, são tão vulneráveis aos enganos como os demais. Existem muitas causas de erro, mas as mais comuns são testemunhas experimentais inadequadas ou inapropriadas, hipóteses e suposições inválidas, confusão entre causa e efeito, entre outros. Muitos exemplos poderiam ser citados, mas começarei apontando a mim mesmo.                   
    No início dos anos 50, em Iowa, estudei dormência de sementes de Digitaria sanguinalis, uma invasora comum. Realizei um experimento simples: sementes dormentes eram colocadas em água corrente por períodos de até 168 horas. A testemunha, ou seja, aquelas sementes que não eram embebidas em água, germinavam menos de 5%, enquanto cerca de 90% das sementes germinavam após 168 horas em água corrente.                  Concluí que havia um inibidor solúvel em água que causava a dormência das sementes, o qual era retirado pela água corrente, e publiquei um trabalho relatando os resultados e minhas conclusões. Alguns anos mais tarde, já na Universidade do Mississippi, decidi retomar aqueles estudos, usando sementes colhidas no Mississippi. Repeti o experimento com embebição em água, porém não houve nenhum efeito sobre a dormência: as sementes germinaram menos de 5% tanto com zero horas de embebição como com 192 horas! Concluí que as sementes do Mississippi eram de um ecótipo diferente daquelas utilizadas em Iowa no primeiro estudo e obtive sementes de Iowa para repetir o experimento.               
    Novamente, tratar as sementes com água não teve efeito. Mais de um ano depois, tive a idéia de que as diferenças nas respostas das sementes de D. sanguinalis em Iowa e Mississippi deveriam estar relacionadas a alguma propriedade da água, como talvez a temperatura. Realmente, a temperatura da água da torneira no mesmo laboratório e mês em que realizei o primeiro experimento era de 12ºC, enquanto a temperatura da água corrente no Mississippi era de 22ºC. Confirmei o experimento, verificando que a temperatura de 12ºC da água servia como um tratamento de pré-esfriamento para superar a dormência de sementes de D. sanguinalis. Logo, não havia nenhum inibidor envolvido...  
               
    “Na ciência, diferenças entre aparência e realidade não são raras.”
               
    A variedade de soja Hill era a variedade de ciclo precoce mais cultivada no Mississippi nos anos 60. As sementes ficavam maduras para colheita no início de setembro. Nessa época, a variedade Bragg era a variedade de ciclo tardio mais cultivada. As sementes alcançavam a maturidade no final de outubro. As sementes da variedade Hill apresentavam sérios problemas de qualidade, como germinação e vigor, entre outros. Por outro lado, as sementes da soja Bragg tinham poucos problemas de qualidade, tendo sempre alta germinação.               
    Comecei a pensar que a Hill era geneticamente inferior a Bragg em termos de  qualidade de sementes, porém fui desafiado por um colega a examinar a hipótese de que as diferenças de qualidade de sementes entre as duas variedades eram mais relacionadas a fatores ambientais do que a fatores genéticos. Realizamos experimentos com as duas variedades e, em igualdade de condições, não havia diferenças entre as duas em termos de germinação e vigor e de resistência a condições climáticas desfavoráveis.               
    Estudos posteriores mostraram que as condições ambientais no campo eram muito mais severas, em termos de temperatura e umidade relativa, na época da maturação da variedade Hill. A solução para o problema de qualidade de sementes da variedades de maturação precoce, tais como a Hill, foi deslocar a área de produção de sementes para outras regiões com condições mais favoráveis na época da maturação das sementes.      Estes são dois exemplos de conclusões erradas baseadas em observações científicas que foram resultado da utilização de testemunhas inadequadas e/ou inapropriadas. Em ambos os casos, os dados e observações eram reais. A dormência de sementes de D. sanguinalis era superada por meio do tratamento com água corrente, e as sementes da variedade de soja Hill apresentavam mais problemas de qualidade. A “aparência” das descobertas para o pesquisador (eu), contudo, levaram a conclusões errôneas, as quais foram desafiadas e exigiram experimentos adicionais e melhor controlados para poderem ficar mais próximas à realidade.                Esses casos foram muito importantes para o meu desenvolvimento profissional. Comecei a planejar meus experimentos muito mais cuidadosamente e, o mais importante, fiquei bastante cauteloso quanto a retirar as conclusões mais aparentes e óbvias ou a interpretação mais fácil. Aprendi a pensar, e a pensar de novo...

Compartilhar