Dormência em Sementes

Mecanismos de Sobrevivência das Espécies

Edição IX | 04 - Jul . 2005
Denise Cunha F. S. Dias-dcdias@ufv.br
    Uma vez madura, a semente é dispersa da planta-mãe, tornando-se um organismo autônomo, pois tem em sua estrutura um embrião que, sob condições adequadas do ambiente, se desenvolverá, originando uma plântula. No entanto, como isto nem sempre ocorre, questiona-se: por que as sementes de algumas espécies não germinam, mesmo quando semeadas sob condições adequadas de umidade e temperatura?                
    A resposta pode parecer simples: porque já estão em processo avançado de deterioração, que culmina com a morte do embrião ou, então, estão dormentes. No primeiro caso, as sementes absorvem água, mas não completam as atividades metabólicas essenciais para o crescimento do eixo embrionário, ou seja, não originam uma plântula completa com raiz e parte aérea. Já as sementes dormentes são aquelas que, embora estejam vivas e sob condições de ambiente que normalmente favorecem o processo de germinação, não germinam por terem alguma restrição interna, a qual impede o desenvolvimento do embrião. A germinação só ocorrerá quando tal restrição for superada, o que na natureza pode levar dias, meses ou anos, dependendo da espécie.               
    O fenômeno da dormência é comum, principalmente em sementes de determinadas hortaliças e forrageiras, algumas fruteiras e de espécies arbóreas e ornamentais, que não germinam logo após a colheita devido aos mecanismos internos, de natureza física ou fisiológica, que bloqueiam a germinação. Esses mecanismos são genéticos e ocorrem no ciclo de vida da espécie, durante a maturação da semente, de modo que, logo após a dispersão, a semente ainda não estará apta para germinar. Essa dormência, que se instala na fase de maturação da semente, é denominada primária. No entanto, em algumas espécies, o bloqueio à germinação se estabelece após a dispersão da semente, induzido por certas condições de estresse ou por um ambiente desfavorável à germinação, caracterizando um outro tipo de dormência, denominada secundária. Sementes não dormentes de alface podem entrar em dormência secundária, quando colocadas para germinar sob temperatura alta.               
    Assim, a dormência da semente é um importante estádio do ciclo de vida das plantas, sendo caracterizada pela ausência temporária da capacidade de germinação, permitindo que as espécies vegetais sobrevivam às adversidades, principalmente aquelas que dificultem ou impeçam o crescimento vegetativo da planta. Trata-se, portanto, de um fenômeno fundamental para a perpetuação e a sobrevivência de muitas espécies vegetais nos mais variados ecossistemas. Também é graças à dormência que sementes de muitas espécies não germinam no fruto quando este está ainda ligado a planta, pois, após a maturidade fisiológica, havendo condições ambientais favoráveis à germinação - como, por exemplo, aumento da umidade pelo excesso de chuvas -, sementes sem algum tipo de bloqueio ao crescimento do embrião poderão germinar ainda ligadas à planta -mãe. Na prática, é comum observar, nessas condições, a germinação das sementes de feijão e de amendoim dentro da vagem, das de algodão no capulho e das de trigo nas espigas. Cabe ressaltar que a maioria das plantas cultivadas atualmente é representada por variedades, cultivares e híbridos geneticamente melhorados por processos de seleção que eliminaram a dormência, pois os objetivos da agricultura moderna são a rapidez e a uniformidade da germinação da semente e da emergência da plântula em campo. Esse é o caso das sementes de soja, feijão, girassol, milho e outras cuja sobrevivência é dependente do homem.                
    Contudo, existem muitas espécies que têm a sobrevivência garantida pela dormência. O que varia bastante entre as espécies vegetais é o período de duração da dormência, que pode ser de apenas alguns dias, de alguns meses ou de vários anos. Mesmo para uma mesma espécie, esse período pode variar em função do genótipo, do ambiente onde a semente foi produzida e de outros fatores. Além disso, sementes oriundas de uma mesma planta têm intensidades distintas de dormência, para que a germinação ocorra ao longo do tempo, em intervalos regulares, à medida que a dormência é superada, aumentando a probabilidade dos indivíduos sobreviverem. Assim, o impedimento à germinação da semente, estabelecido pela dormência, se constitui em estratégia benéfica, por distribuir a germinação ao longo do tempo e permitir à espécie "escapar" de condições adversas ao crescimento da plântula. Trata-se, portanto, de um fenômeno que contribui para que a germinação da semente só ocorra em uma época ou estação favorável ao estabelecimento da plântula, garantindo a sobrevivência da espécie.           
   Contudo, uma coisa é certa: para qualquer que seja a espécie, com o decorrer do tempo a dormência torna-se menos intensa, até que seja completamente superada. Assim, mesmo sendo viável e estando sob condições ambientais favoráveis à germinação (temperatura, disponibilidade de água e oxigênio), a semente não germinará até que o mecanismo de impedimento deixe de atuar.                
    Portanto, sob o ponto de vista evolutivo, a dormência é uma característica adaptativa que assegura a sobrevivência das espécies nos diferentes ecossistemas. Como consequência, é um dos fatores que contribui para a persistência das plantas daninhas, dificultando o seu controle e a sua erradicação com prejuízos econômicos para os agricultores. Apesar do controle sistemático dessas plantas, por meio de capinas e herbicidas, todos os anos milhares emergem durante o cultivo das lavouras, uma vez que as sementes dessas espécies sobrevivem no solo por vários anos devido à dormência. Um exemplo que ilustra esta situação é a dificuldade de erradicação do arroz vermelho nas lavouras de arroz nas mais diferentes regiões.               
    As espécies que evoluíram em regiões tropicais úmidas desenvolveram mecanismos de impedimento à absorção de água, para evitar que a germinação ocorra logo após a  dispersão da semente, assegurando a sobrevivência. Já em clima semi-árido, a escassez de chuvas é o fator que limita a sobrevivência das espécies; sementes típicas destas regiões geralmente têm  substâncias inibidoras da germinação, solúveis em água, que só serão lixiviadas após chuva intensa, de modo que a germinação só ocorrerá quando houver disponibilidade de água no solo suficiente para o estabelecimento da plântula. Em florestas muito densas, a ausência de luz sob o dossel é o fator que impede a germinação das sementes de diversas espécies, que só germinam em presença de luz ou que necessitam dessa para superar a dormência, sendo denominadas fotoblásticas positivas. Só após a abertura de uma clareira, como ocorre, por exemplo, após uma queimada ou com a queda de um galho ou mesmo de uma árvore, é que tais sementes germinarão, recompondo a vegetação daquela área.                
    São consideradas sementes fotoblásticas positivas as de gramíneas forrageiras (braquiárias, capim colonião e outras) e invasoras (tiririca, capim arroz, capim marmelada), certas bromélias de ecossistemas de restinga, alguns cultivares de alface e espécies nativas arbóreas pioneiras (Cecropia spp., Cróton sp e Miconia sp.).               
    A dormência também pode ser um obstáculo para a agricultura, uma vez que gera desuniformidade na emergência das plântulas em campo, havendo necessidade, muitas vezes, de se utilizar tratamento adequado para a superação da dormência antes da semeadura, o que nem sempre é prático e viável.
    Em sementes recém colhidas de leguminosas utilizadas na adubação verde, como mucuna, guandu, feijão-de-porco, lab-lab, a dormência pode acarretar dois tipos de problema:                
1) aumento da quantidade de sementes para a semeadura, pois a dormência pós-colheita é acentuada, de modo que grande proporção de sementes do lote não germinará;               
2) muitas sementes dormentes permanecem viáveis no solo e germinarão durante o desenvolvimento das futuras culturas instaladas na área, constituindo, portanto, plantas invasoras.  
                 
   Conhecer os mecanismos de dormência e a sua duração para as diferentes espécies tem importância tanto ecológica como também econômica, pois auxilia na definição sobre a necessidade ou não de se utilizar tratamentos específicos para atuarem no metabolismo da semente, liberando, o embrião para o desenvolvimento ou tornando-o apto para germinar.               
   O período de duração da dormência é bastante variável entre as espécies. Sementes de algumas espécies, especialmente hortaliças e gramíneas forrageiras, por exemplo, têm um período curto de dormência (geralmente, cerca de três a seis meses), de modo que o intervalo de tempo compreendido entre a colheita das sementes e a semeadura é suficiente para que, por ocasião do plantio, não tenham mais dormência.          Nesse caso, o agricultor não precisa utilizar, antes da semeadura, tratamentos para a superação da dormência, pois esta já foi naturalmente superada com o armazenamento. No entanto, para algumas gramíneas forrageiras tropicais, o estabelecimento de pastagens é dificultado pela dormência acentuada das sementes. É o caso da Brachiaria dyctioneura, cv. Llanero, cujas sementes podem apresentar dormência até um ano depois de colhidas, acarretando problemas durante o estabelecimento da pastagem.                
    A imersão das sementes de gramíneas forrageiras em ácido sulfúrico concentrado tem sido considerada eficiente para a redução da dormência. Esse tipo de escarificação tem sido aplicado, em escala comercial, especialmente nos lotes destinados à exportação, com o objetivo de melhorar a pureza física, uma vez que o ácido degrada as impurezas presentes no lote, que são posteriormente eliminadas durante a lavagem das sementes. Por outro lado, em sementes de determinadas espécies, como as de leguminosas arbóreas, forrageiras, ou utilizadas como adubo verde, e algumas fruteiras de clima temperado (pêssego, caqui, maçã, pêra, ameixa), a dormência pode ser mais acentuada, durando um ano ou mais, havendo necessidade, muitas vezes, de serem utilizados tratamentos específicos antes da semeadura para a adequação do estande. Estes tratamentos têm por finalidade uniformizar a germinação da semente e a emergência das plântulas, evitando falhas no estande final.                
    Conhecer as causas ou os mecanismos de dormência auxilia tanto na definição da necessidade ou não de se utilizar tratamento específico para superá-los, como também na definição do método mais eficiente para cada espécie.

                
    Arroz Vermelho                                                                          Ave-do-Paraíso 

    Para facilitar o entendimento, pode-se considerar que, basicamente, são três os mecanismos de dormência:                
1) dormência física, relacionada à impermeabilidade do envoltório da semente à água;                
2) dormência fisiológica, relacionada aos processos fisiológicos que bloqueiam o crescimento do embrião; e                 
3) dormência morfológica, relacionada à imaturidade do embrião. Algumas espécies apresentam o envoltório impermeável à água, devido a presença de lignina, suberina e outros compostos, sendo necessário rompê-lo ou torná-lo mais permeável, o que se consegue através de tratamentos de escarificação, utilizando-se lixa, areia grossa, imersão em água quente ou em produtos químicos abrasivos (ácidos, como o sulfúrico e clorídrico, ou bases). Este mecanismo, de natureza física,  é típico de algumas famílias, tendo como destaque as leguminosas, cujas sementes, na maioria das vezes, devem ser submetidas aos tratamentos específicos antes da semeadura para a superação da dormência.
                   
    Na dormência fisiológica, o embrião, apesar de fisicamente estruturado, completo, não germina por razões tais como balanço hormonal inadequado, impermeabilidade do envoltório a trocas gasosas (oxigênio e, ou gás carbônico) ou presença de compostos químicos inibidores.                
    A superação dessa dormência envolve modificações hormonais no embrião, ou seja, tanto a redução da concentração dos inibidores como a síntese de fitohormônios promotores da germinação. Assim, métodos que atuem impedindo a ação dos primeiros ou que aumentem a concentração dos promotores são os mais recomendados. A embebição direta das sementes em solução de GA pode ser eficaz para algumas espécies.              Para sementes de algumas espécies de clima temperado, um período de exposição à baixa temperatura em substrato úmido é suficiente para promover a alteração necessária no balanço hormonal. Esse tratamento é conhecido por estratificação a frio, pois as sementes são colocadas em camadas no substrato umedecido. Por exemplo, sementes de espécies de clima temperado como as de pêssego, maçã, pêra, ameixa, caqui, Acer spp. e Pinus spp. devem ser estratificadas em substrato úmido, a 5°C (geladeira ou câmara fria), por períodos de 30 a 90 dias, dependendo do genótipo, para que a dormência seja superada. Cada cultivar, dependendo da sua origem e, principalmente, de suas características genéticas, requer um período ótimo de estratificação. Sementes de outras espécies, como as de gramíneas forrageiras, exigem alternâncias bruscas de temperatura ou choque térmico para que a dormência fisiológica seja vencida; nesse caso, temperaturas diurnas superiores a 30°C e noturnas inferiores a 20°C são as mais indicadas.               
   O calor seco ou as temperaturas relativamente altas (superiores a 35°C) também auxiliam na superação da dormência de algumas espécies de floresta tropical, de cerrado e de cereias (arroz, trigo), sendo recomendado tratamento de pré-secagem com circulação de ar a 35-40°C por 5 a 7 dias. A dormência pode ser causada também por compostos químicos inibidores presentes em diferentes estruturas da semente que, quando translocados para o embrião, inibem o seu crescimento. Como a maioria desses compostos é solúvel em água, é fácil imaginar como essa forma de dormência é superada na natureza: a água da chuva ou do degelo da neve lixivia tais compostos. Assim, a lavagem das sementes em água corrente, por determinado período de tempo, é um método eficiente para a superação da dormência de sementes que apresentam esse mecanismo, como as de beterraba, rosa, pequi, algumas espécies de pimentas, espécies da Caatinga.               
    Os tecidos que circundam o embrião ou aqueles do próprio embrião podem restringir a entrada de O2 e a saída de CO2, interferindo na respiração da semente e, consequentemente bloqueando o crescimento do embrião. Esta impermeabilidade aos gases é atribuída aos compostos fenólicos, existentes no envoltório da semente, que retêm o O2, reduzindo a disponibilidade desse gás para o embrião. Esse mecanismo ocorre em sementes de cereais (arroz, aveia, cevada) e também em gramíneas forrageiras. Para a sua superação, utiliza-se, em laboratório, antes da condução do teste de germinação, tratamento de escarificação química (H2SO4) em sementes de gramíneas forrageiras, para a remoção parcial ou total da "casca" (pálea e lema), que é a estrutura responsável pela retenção do O2. Esse método, no entanto, não é indicado para todas as espécies que têm esse mecanismo de dormência. Por exemplo, em arroz, recomenda-se a imersão das sementes em água ou em solução de hipoclorito de sódio antes do teste de germinação.

    
    Mucuna 

   Em diversas espécies, como erva-mate, araticum, pêssego, maçã e ameixa, ocorre a dormência morfológica, ou seja, as sementes são dispersas com o embrião morfologicamente imaturo. Para que a semente germine é necessário um determinado período de tempo, variável com a espécie, até o completo desenvolvimento do embrião. Esse mecanismo de dormência é conhecido também como imaturidade do embrião ou embrião rudimentar. A estratificação das sementes é o método mais indicado para promover o desenvolvimento do embrião. Para sementes de erva-mate recomenda-se a estratificação em areia úmida por 150 dias. Em espécies da família Rosaceae, como o pêssego, ameixa, maçã, além da dormência morfológica está presente também a dormência fisiológica, ou seja, após o completo desenvolvimento do embrião, este ainda não germinará devido ao bloqueio fisiológico causado por hormônios inibidores do crescimento; nesse caso recomenda-se, também, a estratificação a frio (30 a 90 dias), que promoverá o amadurecimento do embrião e modificará o balanço hormonal do mesmo.

    

    Na natureza, cada mecanismo de dormência é superado por diferentes agentes. Por exemplo, os ácidos da matéria orgânica do solo e, ou os do trato digestivo dos animais dispersores de sementes contribuem para tornar o envoltório da semente permeável à água; o calor provocado pelo fogo ou pela abertura de uma clareira na mata pode, também, atuar nesse sentido. O frio, característico de um inverno rigoroso, pode provocar alterações fisiológicas na semente, desbloqueando o crescimento do embrião. Compostos inibidores presentes nas sementes são lavados pela água da chuva ou do degelo.               
    As sementes localizadas no solo a uma profundidade inadequada, caso não fossem dotadas de mecanismos bloqueadores da germinação, ao germinarem, suas reservas seriam consumidas antes que a plântula alcançasse a superfície do solo. Apenas quando estiverem em situação onde predomine a radiação vermelha (sob luz solar direta ou localizada a 2-3cm de profundidade no solo), é que as sementes fotoblásticas positivas germinarão, pois tal radiação determina alterações no metabolismo do embrião direcionando-o para o desenvolvimento. 
              
    Comentário Final               
    A dormência tem um significado ecológico importante, conferindo às sementes resistência à ingestão por animais, ao calor, ao frio, ao fogo e aos demais agentes e  interferindo na dinâmica das populações naturais, uma vez que está relacionada à adaptação das plantas à heterogeneidade dos diferentes ecossistemas, permitindo a sobrevivência das espécies vegetais e garantindo que áreas abertas sejam colonizadas rapidamente. A regeneração de comunidades vegetais a partir de sementes depende, em grande parte, da capacidade da semente "reconhecer" se o ambiente no qual se encontra é favorável à sobrevivência da sua descendência.    Assim, o processo de sucessão ecológica, que é a forma como a vegetação e também as florestas se regeneram, só ocorre graças à capacidade das sementes das diferentes espécies e dos diferentes estádios sucessionais "aguardarem" a ocasião certa para germinar. Contudo, trata-se de um fenômeno complexo, com diversas interfaces e interações, havendo ainda muitos aspectos a serem explorados, estudados e esclarecidos.

                

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